A presunção da inocência ganha ares relativos

AutorWanderlei José dos Reis
CargoJuiz de direito
Páginas34-44

Page 34

1. Considerações iniciais

O artigo 5º, inciso LVII, da lei fundamental estabelece que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; eis a aclamação explícita do princípio da presunção de inocência, também chamado de princípio da presunção de não culpa ou princípio da não culpabilidade, um dos principais pilares do processo penal no estado democrático de direito em que se arrima a República Federativa do Brasil.

No aspecto terminológico, ao tratar de tais nomenclaturas, Gomes e Bianchini, de forma oportuna, advertem que a denominação “politicamente correta” seria “presunção de inocência”, utilizada pela Convenção Americana de Direitos Humanos, já que a expressão “princípio da não culpabilidade”, reiteradamente utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, encontra raízes no fascismo italiano, que não se conformava com a ideia de que o acusado fosse, em princípio, inocente1.

É possível dizer, de maneira ampla, que nos sistemas penais inquisitórios costuma-se partir da premissa de que o acusado ou investigado é culpado, de modo que a máquina estatal se move no sentido de colher elementos probatórios que justifiquem sua condenação. A adoção do princípio da presunção de inocência, por sua vez, inverte o sentido da persecução penal adotada nos sistemas inquisitórios, fazendo com que o processo penal tome como premissa a hipótese de que o acusado ou investigado é inocente, devendo então ser provada, durante o curso do processo, a sua culpa. Sendo assim, não pode haver qualquer atuação estatal configuradora de antecipação da pena.

Nesse sentido, já aduzia Beccaria que “um homem não pode ser tido como culpado antes da sentença do juiz, nem a sociedade pode retirar-lhe a proteção pública, a não ser quando se tenha decidido que violou os pactos com os quais aquela lhe foi outorgada”2.

Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, reviu sua jurisprudência acerca do princípio da presunção de inocência e gerou uma

Page 35

grande celeuma no âmbito jurídico do país, com base no novel julgamento do Habeas Corpus (HC) 126.292/ SP, ao qual nos ateremos a seguir.

2. Análise do tema

É consabido que o princípio da presunção de inocência se projeta sob dois aspectos no processo penal, ou, dito de outra forma, são dois os principais efeitos que o princípio produz na órbita processual penal: no onus probandi e nas prisões cautelares. O primeiro diz respeito ao standard anglo-saxão de prova e de que a dúvida sempre milita em favor do acusado, traduzido no princípio in dubio pro reo, constituindo esse o núcleo duro do princípio, por isto, de caráter absoluto. Dessa forma, o onus probandi é atribuído ao acusador, a quem incumbe o dever de comprovar em juízo no curso do processo penal aquilo que está retratado na peça acusatória, sob pena de absolvição do réu. No que tange às prisões cautelares, também denominadas de prisões processuais ou provisórias, qualquer uma de suas espécies – prisão em flagrante, preventiva ou temporária – impede se configurem uma espécie de punição antecipada ao réu.

Assim, em análise a tais efeitos, tem-se que, por força do princípio da presunção de inocência, a restrição de direitos do réu antes do julgamento é ilidida, mas não de uma forma absoluta, como pode ser depreendido da admissibilidade da prisão cautelar ou provisória, que não pode, em nenhuma hipótese, se apresentar como um castigo antecipado, devendo, então, revelar-se sempre como medida assecuratória vinculada à real necessidade de sua imposição, como no caso das hipóteses legais do art. 312 do Código de Processo Penal (CPP), que estabelece os fundamentos em que a prisão preventiva poderá ser decretada – garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal –, quando houver prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria (pressupostos da prisão preventiva) e uma vez atendidos os demais requisitos legais ou condições de admissibilidade da medida. De outro lado, no tocante ao segundo viés do princípio da presunção de inocência, o ônus da prova é atribuído ao acusador, o qual, por isso, tem o dever de comprovar cabalmente no processo penal diante do Estado-juiz aquilo que está retratado na peça acusatória, mister cujo descumprimento ou cumprimento insatisfatório acarreta a absolvição do acusado, pela aplicação de outro postulado que guarda relação estreita e direta com a presunção de inocência, que é o princípio in dubio pro reo.

Logo, a priori, mostrar-se-ia incompatível o princípio constitucional da presunção de inocência com o cumprimento provisório de pena já que o cerceamento da liberdade de forma preventiva não pode constituir uma punição antecipada àquele que nem sequer possui condenação definitiva contra si, revelando-se eventual execução antecipada de pena um ato atentatório ao princípio constitucional da dignidade de pessoa humana (art. 1º, inciso III, CF), epicentro do constitucionalismo contemporâneo.

Todavia, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 126.292/SP, ocorrido em 17 de fevereiro de 2016, de relatoria do ministro Teori Zavascki, deu uma guinada em sua jurisprudência acerca do princípio da presunção de inocência.

Para uns, a decisão do STF representou um grande avanço, já para outros o entendimento da corte se traduziu em retrocesso. De qualquer forma, faz-se necessário trazer à baila o histórico jurisprudencial do alto pretório sobre o tema até o julgamento do HC 126.292/SP, o qual, sem dúvida, significou um novo divisor de águas relativo ao tema na nossa história recente, tanto no aspecto processual penal quanto no constitucional.

Entrementes, já sob a égide da Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 68.726/DF3, ocorrido em 28 de junho de 1991, de relatoria do ministro Néri da Silveira, firmou entendimento no sentido de que não conflitaria com a norma do art. 5º, inciso LVII, da carta constitucional, a ordem para que se expeça mandado de prisão do réu, cuja condenação à pena privativa de liberdade se confirme, unanimemente, no julgamento de sua apelação contra a sentença desfavorável, ainda que pendente o julgamento de recurso especial ou extraordinário nas instâncias superiores.

Ainda, no julgamento do HC 74.983/DF4, de relatoria do ministro Carlos Velloso, ocorrido em 30 de

Page 36

junho de 1997, o STF decidiu que, por não terem efeito suspensivo, os recursos especial e extraordinário não impedem o cumprimento de mandado de prisão.

Na mesma trilha, no âmbito das turmas do STF, até o ano de 2009 já prevalecia o entendimento de que era possível a execução provisória da condenação após confirmada a sentença condenatória pelo órgão judiciário de segundo grau, visto que os recursos eventualmente aviados, especial e extraordinário, não são dotados de efeito suspensivo, nos termos do então em vigor art. 27, § 2º, da Lei 8.038/905.

Aliás, com base nesse entendimento, até então predominante, foi editada a Súmula 716 do STF, a qual admite a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Contudo, no julgamento do HC 84.078/MG, ocorrido em 5 de fevereiro de 2009, de relatoria do ministro Eros Grau6, a corte excelsa reformulou o seu entendimento e, por maioria (7 votos a 4) e nos termos do voto do relator, assentou que a execução provisória da pena, sem que se opere o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, implica afronta ao princípio da presunção de inocência, plasmado no art. 5º, inciso LVII, da carta da República.

Em seu voto, o ministro Eros Grau, na condição de relator, ressaltou que, ao refletir sobre a jurisprudência da corte sobre o tema, chegou à conclusão de que o entendimento até então adotado pelo tribunal deveria ser revisto. Isso porque, segundo ele, o art. 637 do Código de Processo Penal estabelece que o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo e, uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença. Por sua vez, o art. 105 da Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal) condiciona a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória, valendo a mesma regra para a execução da pena restritiva de direitos. Da mesma forma, o art. 5º, inciso LVII, do estatuto político de 1988, dispõe que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

A par disso, o ministro Eros Grau aduziu que “os preceitos veiculados pela Lei 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP7.

No tocante à pena restritiva de direitos, o ministro frisou que ambas as turmas do STF8 têm dado interpretação ao art. 147 da Lei de Execução Penal, à luz das cláusulas constitucionais, e, por conta disto, vêm repelindo a possibilidade de execução da sentença condenatória sem que esteja coberta pelo manto do trânsito em julgado.

Dentro dessa lógica, se não é permitida a execução de pena restritiva de direito antes do trânsito em julgado da sentença, com maior razão deve ser coibida a execução de pena privativa de liberdade – por ser incontestavelmente mais grave – enquanto não sobrevier o título condenatório definitivo. Por isso, o ministro Eros Grau obtemperou que “entendimento diverso importaria franca afronta ao disposto no art. 5º, inciso LVII, da Constituição, além de implicar a aplicação de tratamento desigual a situações iguais, o que acarreta violação do princípio da isonomia”9.

No mesmo passo, o ministro relator afirmou que, por meio de uma leitura sóbria do texto constitucional, seria possível inferir, sem maiores dificuldades, que a Constituição assegura que nem a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT