Prevalência do Negociado x Legislado - A Reforma Trabalhista da Lei n. 13.467/2017

AutorFrancisco Alberto da Motta Peixoto Giordani
Páginas197-203

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“A cilada maior é acreditarmos que as armadilhas estão sempre fora de nós, num mundo que temos por cruel e desumano.

Ora, por muito que nos custe, nós somos também esse mundo. E as armadilhas que pensávamos exteriores residem profundamente dentro de nós. Quebrar as armadilhas do mundo é, antes de mais, quebrar o mundo de armadilhas em que se converteu o nosso próprio olhar. Precisamos de passar um programa antivírus pelo nosso hardware mental”.

(Mia Couto)1

“Em vez de se reprimir com a ‘Tirania do OU’, as empresas altamente visionárias se libertam com a ‘Genialidade do ‘E’- a capacidade de englobar os dois extremos de uma série de dimensões ao mesmo tempo. Em vez de escolher entre A OU B, elas descobrem uma forma de ter A E B”.

James C. Collins e Jerry I. Porras.2

Antes de ferir o tema, ou mesmo já ferindo-o, eis que visualizo forte relação entre o excerto que a seguir reproduzirei com o tema objeto destas reflexões, o tão ardentemente desejado pelos que queriam – a todo custo – ver vitoriosa a prevalência do Negociado x Legislado, e que lograram ver seus anseios atendidos pela Lei n. 13.467/2017, peço vênia para lembrar aguda observação do preclaro jurista lusitano António Menezes Cordeiro, apontando o cuidado que se há de ter, atento ao fato de que3

A História – particularmente a do século XX – mostra que os direitos das pessoas foram sempre restringidos com apelo a causas nobres. E nesses cenários inicialmente justificados foram perpetrados os maiores barbarismos. Há, pois, limites que nenhum fim, por excelente que se apresente, pode postergar.

A esse cuidado, outro há de ser somado, porquanto, como bem fixa Dom Orlando Dotti, Bispo Emérito de Vacaria-RS, em prefácio ao livro do Padre Anderson Francisco Faenello4, “Não se pode cair no reducionismo de olhar para o trabalho apenas como emprego nem como salário compensador, e muito menos como mercadoria disponível na praça do mercado. O trabalho humano deve ser analisado dentro do humanismo cristão, em que a pessoa humana goza do primado sobre todas as coisas, e o trabalho, da primazia sobre o capital. Nessa visão, ‘todo o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho’ (LE 6)”.

Recordados tão valiosos ensinamentos, há de observar que esse tema voltou, o da prevalência do negociado sobre o legislado, tendo sido objeto da reforma trabalhista levada a efeito por meio da Lei n. 13.467/2017, de 13.07.2017, com entrada em vigor a partir de 13.11.2017, num momento que se diz de crise!

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Curioso não?

Como pode ser entendido isso?

Como um ato de malícia e muitas outras coisas não favoráveis para a classe trabalhadora, aproveitando da necessidade porque passa todo trabalhador, para prover a sua existência e a dos seus!

Por falar em necessidade, de lembrar Eurípedes que, em sua bela tragédia Alceste, uma das que contribuiu para imortalizar o teatro grego, agudamente fez observar, por um de seus personagens, a força irresistível da necessidade, ao fazê-lo declarar5:

Alçou-me um dia a Musa, em suas asas, à região celeste, e de lá, depois de observar todas as coisas que existem, nada vi mais poderoso do que a Necessidade! Nem as fórmulas sagradas de Orfeu, inscritas nos estélios da Trácia, nem os violentos remédios que Apolo ensinou aos filhos de Esculápio, para que minorassem os sofrimentos dos mortais.

Só ela, entre as deusas, não tem altares, nem imagens, a que possamos levar nossos tributos: nem recebe vítimas em holocausto. Ó temerosa divindade! Não sejas mais cruel para comigo, do que já tens sido até hoje! Tudo o que Júpiter ordena, és tu que executas sem demora; até o ferro dos Calíbios tu vergas e dominas; e nada conseguirá abrandar teu coração inflexível!.

A propósito do argumento da crise, de lembrar, à partida, que o Direito do Trabalho nasceu com e por causa de crise; logo, viver/conviver com crise, não é novidade para esse ramo do direito! Ou seja, falar em crise do Direito do Trabalho é algo repetitivo, carente de imaginação e vigor, pois ele já não nasceu nos braços de uma crise? E que sempre o acompanha?

Aliás, como diz Antonio David Cattani, há um abuso na utilização do vocábulo crise, e sem maior especificação de sua relação com o que, para melhor situar a sua efetiva ocorrência, em suas palavras6: “Entretanto, o uso indiscriminado desse termo {crise} provocou o seu desgaste. Ele é abusadamente empregado para referir-se a qualquer evolução considerada problemática, numa ordem pensada como normal ou estável. Porém, essa ordem raramente é conceituada ou descrita com objetividade. Ela aparece, antes, como uma hipotética época de ouro, como uma mítica belle époque que teria existido no passado”.

Ainda – e também por isso –, quanto ao argumento “crise”, é preciso considerar que há recebê-lo com muita cautela, grande reserva e muita desconfiança, pois, como lembram Patrícia Dittrich Ferreira Diniz e Marco Antônio César Villatore, citando posicionamento de Joseph Alois Schumpeter:

Por fim, ele assegura que a crise é essencial para o desenvolvimento do capitalismo, inclusive chamando-a de destruição-criativa, uma vez que em razão de determinado distúrbio, no sistema, o capitalismo precisa ser criativo e se reinventar para sobreviver7.

Ora, em sendo assim, forte a observação de António Casimiro Ferreira, no sentido de que8:

Neste sentido, e em muitos casos, a crise tem sido utilizada como mais uma oportunidade de subordinar os trabalhadores individuais, os governos e mesmo sociedades inteiras ao ritmo dos mercados do capitalismo global. Quanto aos trabalhadores, os sucessivos pacotes de austeridade agravam as situações de trabalho precário e de fragilidade laboral, evidenciando que a função de pagar a crise recai sobre as pessoas, suas famílias e pensionistas.

Relativamente a crise, ainda duas observações devem ser feitas: uma, quanto a lição do grande Prof. Fábio Konder Comparato, para quem9:

Empregamos a todo tempo a palavra crise para caracterizar o lamentável estado atual de nossa política e de nossa economia, sem entender a semântica do vocábulo. Ele foi criado por Hipócrates, a partir do verbo grego krito, kritien, cujos sentidos principais no grego clássico eram de separar ou discernir, de um lado, e de julgar ou decidir, de outro. Para o Pai da Medicina, krisis designava o momento preciso em que o olhar justamente dito crítico do esculápio conseguia discernir o tipo de doença que acometia o paciente, permitindo-lhe fazer com precisão o diagnóstico e o prognóstico.

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A julgar pelo remédio sugerido pelos que apresentaram essa reforma, convertida na lei suso-mencionada, não é difícil enxergar a quem é atribuída a responsabilidade pelo momento atual que o nosso País atravessa.

Por seu turno, no “Dicionário das Crises e das Alternativas”, dos investigadores do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, na palavra crise está dito que:

Na nossa linguagem comum, ‘crise’ significa algo em perigo, sob ataque, em transformação. Apesar de usarmos, de facto, esta palavra quotidianamente nas nossas vidas para falar de todo o tipo de situações, não pode ser negado que o conceito tem também complexas conotações políticas.

...

Por vezes, a palavra ‘crise’ não é tanto usada para descrever uma situação difícil, e até perigosa, mas antes para agravar e até criar essa mesma situação. A História antiga e contemporânea diz-nos que os políticos (e poderes dominantes) procuram produzir, frequente e ativamente, um clima de crise – seja social, econômico ou ‘afetivo’ – de forma a alterar o equilíbrio da balança constitucional a seu favor10.

Destarte, como salientado, é preciso muita cautela e até alguma boa dose de desconfiança, com o argumento/justificativa da existência de crise, para dar respaldo e/ou disparar (e com que pontaria!) contra direitos da classe trabalhadora, tão duramente conquistados, mas, ao que parece, jamais assimilados inteiramente, por certos segmentos da sociedade, já que, com maciço apoio de várias fontes, que se “unem”, lamentavelmente, “em torno de um interesse comum”, sempre à espreita de um momento favorável – e se necessário criá-lo, “mãos à obra” então!– para retirá-los, ou ao menos, diminuí-los consideravelmente, o que um exame da Lei
n. 13.467/2017, que é o resultado do aludido momento favorável, permite constatar!

Para que não se diga que nego, absolutamente, a existência de crise, afirmo que não é isso o que digo, mas sim que, embora as coisas não sejam tão simples assim, nem se reduzam a apenas isso, por mais triste que seja, para alguns setores, “uma boa (e oportuna) crise pode ser bem aproveitada, trabalhada, direcionada”!

De todo modo, essa mudança, a provocada pela lei a que se vem referir, não significa apenas uma simples mudança na...

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