Primazia das convenções internacionais em matéria tributária sobre o Direito interno

AutorKarla Margarida
Páginas109-124

Karla Margarida. Professora do UniCEUB; procuradora federal; chefe de estudos e pareceres da Procuradoria do CADE; pesquisadora do Grupo Integrado de Pesquisa em Direito Internacional Econômico e Sistemas de Integração. karlasantos@uol.com.br

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1 Introdução

O processo de globalização teve grande evolução com o incremento de acumulação de capitais e sua internacionalização, possibilitando a empresas, nações e indivíduos investir em países onde não estejam fisicamente instalados, atribuindo novo perfil à distribuição de capitais e ao poder dela decorrente. No que tange às empresas e aos países detentores de nível de renda elevado, pode-se considerar que a concentração de capitais viabiliza a formulação de estudos e cenários econômicos que lhes dão projeções seguras acerca do processo decisório, minimizando os riscos e viabilizando não apenas o acerto mas também a busca de ganhos diferenciais por meio de adequado planejamento tributário.

O Brasil tem-se mostrado partícipe ativo nas negociações que têm por objetivo incrementar o comércio mundial, imprimindo esforços na melhoria de condições de acesso aos mercados, bem como na eliminação progressiva de barreiras impeditivas ao livre comércio de pessoas, bens e capitais. Nesse sentido, ao firmar convenções que contemplem a matéria tributária, o Estado brasileiro mostra preocupação em eliminar situações que constituam óbices à realização de investimentos no país, como o problema da dupla tributação, haja vista que a maior parte dos Estados soberanos utiliza o critério da taxação global da renda (world wide income taxation). Além de constituírem mecanismos contra a evasão e a fraude tributária internacionais, as convenções permitem que seja feito pelas empresas um planejamento tributário, minimizando efeitos da bitributação jurídica e econômica1.

A harmonização das legislações dos Estados envolvidos é uma etapa importante no processo de globalização. Qualquer nação que tenha por objetivo incrementar o comércio internacional deve buscar minimizar, quando não eliminar, os efeitos inconvenientes causados pela dupla ou múltipla imposição fiscal.

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As convenções internacionais2 possuem papel importante na dinâmica econômica, também no fluxo de integração de mercados, constituindo mecanismos utilizados para minimizar ou reforçar estruturas já bastante concentradas e permitir a utilização de estruturas nocivas ao comercio internacional, como associações entre as empresas3. Podem constituir excelente ferramenta para que esses entes acumulem capital e reforcem suas estratégias nos mercados de atuação, visando sempre auferir lucros maiores ou incrementar suas parcelas de mercado. A matéria tributária pode ser contemplada como objeto principal ou de forma incidental.

Como expressão da soberania estatal, transacionar em matéria tributária não é tarefa fácil em qualquer Estado soberano. No que se refere ao Brasil essa dificuldade é agravada pela discussão da primazia das regras convencionais sobre as normas de direito interno, máxime quando disponham sobre a competência privativa de estados e municípios. A matéria não é pacífica, e uma análise mais apressada pode trazer sérios efeitos para a economia nacional, ao comprometer a eficácia do texto convencional ou limitar sua abrangência.

O presente trabalho pretende examinar a questão da primazia das convenções internacionais em matéria tributária em que a República Federativa do Brasil figura como parte, justificando a necessidade da prevalência do que nelas for disposto como expressão de autolimitações consensuais efetuadas por entes soberanos. A análise do tema tem relevância diante do posicionamento do Brasil em firmar acordos internacionais com diversos países e, principalmente, sob a perspectiva de criação de mercado comum entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.

Até para o sucesso das etapas que precedem a criação de um mercado comum, como as áreas de livre comércio e as zonas aduaneiras, e a prevalência das disposições de convenções internacionais em matéria tributária revelam importância. A análise das correntes que defendem a existência ou não de única ordem jurídica e a análise das disposições sobre o assunto na Constituição Federal e na jurisprudência auxiliam a situar o país diante de suas leis e de sua vontade de incrementar as relações internacionais com outros Estados soberanos.

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2 Convenções internacionais em matéria tributária
2. 1 Aspectos históricos

Há estudos que indicam as primeiras convenções sobre matéria fiscal no final do século XIX4. No entanto, apenas no período próximo à 1ª Guerra Mundial, os esforços europeus em matéria de convenções tributárias começam a ser mais eficazes. Em 1922, um grupo de especialistas de sete países europeus foi constituído para elaborar projetos de convenções fiscais, sob a égide das Sociedades das Nações. Em outubro de 1928, uma reunião geral de especialistas governamentais adotou duas séries de textos referentes a modelos de convenções: uma destinada a evitar a dupla imposição, notadamente relativa aos impostos diretos e aos direitos de sucessão; outra referente a modelos de convenções bilaterais relacionados à assistência administrativa e à assistência judiciária em matéria de reembolso5.

O Conselho da Organização Européia de Cooperação Econômica (OECE), que se transformou na OCDE em 1960, adotou a primeira recomendação acerca de dupla imposição tributária em 25 de fevereiro de 1955. Em 1956, a OCDE criou um comitê fiscal que elaborou o primeiro projeto de convenção em matéria tributária em 1963, o segundo em outubro de 1977 e o terceiro em novembro de 1983, revisado em setembro de 19926. Deve-se destacar a importância desses textos, haja vista terem possibilitado a expansão das relações econômicas internacionais e serem utilizados pelos países industrializados, membros da OCDE.

Em 1946, a Organização das Nações Unidas assumiu as funções antes exercidas pela Sociedade das Nações, oportunidade em que foi criado seu comitê fiscal. No entanto, apenas em dezembro de 1979, por força de críticas por parte dos países menos desenvolvidos ao modelo de convenção elaborado pela OCDE, surgiu novo modelo da ONU (UN Model), privilegiando oPage 113 critério da territorialidade, ou seja, dando prevalência à fonte dos rendimentos, em detrimento do princípio da residência. Apesar disso, o fluxo das relações entre os Estados, principalmente por força do poder econômico das nações consideradas mais desenvolvidas, fez prevalecer o modelo da OCDE, a despeito do modelo de convenção elaborado pela ONU.

2. 2 Posição das normas internacionais em face do direito interno

Ao analisar as convenções internacionais, contemplando matéria tributária, há que se perquirir em qual situação as normas convencionais ganham relevância sobre dispositivos da ordem interna e como as normas internacionais são consideradas pelo ordenamento nacional7. As convenções internacionais sobre matéria tributária são firmadas com o fim de eliminar ou, ao menos, atenuar os efeitos causados pela incidência excessiva de tributos, diante da presença de determinados estabelecimentos em mais de um Estado soberano. Além disso, visam favorecer a assistência cooperativa internacional, assegurando maior transparência às firmas com atuação em diversos países em pontos considerados obscuros na análise do texto, fatos que incrementam o comércio internacional, dando maior garantia do tratamento das rendas. No entanto, a aplicabilidade das normas convencionais e seu cotejamento com as normas internas passam a ter reflexos não apenas nas relações internacionais entre os países mas também internamente, ao serem aplicadas e confrontadas com as leis vigentes em cada Estado.

As cláusulas convencionais não podem ferir a soberania técnica dos Estados, que, por sua vez, não podem alegar a existência de óbices técnicos ou econômicos para frustrar a convenção. Por outro lado, não pode a República Federativa do Brasil ficar condicionada à vontade de estados e municípios quando for necessária a celebração de tratados internacionais em matéria tributária. Situações como essas expressam as divergências em torno da primazia das convenções no direito interno, em face do disposto no artigo 98 do Código Tributário Nacional, e a forma como o citado diploma tributário foi recepcionado pelo texto constitucional.

Segundo Torres8, as regras convencionais podem ser expressas em três modelos:

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- O primeiro, com o predomínio do direito interno, destaca que, ao compor parte do direito nacional, a convenção entra, automaticamente, em vigor, sem necessidade de ordem de aplicação ou edição de lei com seu conteúdo.

- O segundo, com predomínio do direito internacional, demonstra a existência de ordem internacional de interesses que prevalece ao ser cotejada com as normas internas.

- Por último, a posição que reflete o monismo moderado admite a equivalência entre as normas internas e internacionais, com a aplicabilidade do princípio lex posterior derogat priori para solução de antinomias.

Nesse sentido, passamos a analisar, de forma breve, as posições externadas nas teorias monista e dualista.

2. 3 Monistas e dualistas

A incorporação dos tratados internacionais ao direito interno envolve o exame das doutrinas monista e dualista. A questão torna-se importante ao estudar-se a primazia nas normas convencionais sobre as normas de direito interno, especialmente no que se refere à...

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