Primeiras Regulamentações e gestões da Água

AutorDante A. Caponera
Ocupação do AutorJefe de de la legislación de la FAO
Páginas13-32
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2.1 A IMPORTÂNCIA DAS REGULAMENTAÇÕES DA ÁGUA AO
LONGO DA HISTÓRIA
Um breve exame da história mostra a ligação estreita do desenvolvimento econômico e social
e a estabilidade de um grupo de pessoas com a disponibilidade hídrica e coniabilidade do
abastecimento de água. Essa constatação tem levado muitos autores a deinir os primeiros
agrupamentos sociais como civilizações hidráulicas. Com frequência, essas civilizações são
relacionadas com o rio em cujo vale se desenvolveram. Assim, a civilização egípcia é chamada
de civilização do Nilo, a Assírio-Babilônica ou Mesopotâmica é a civilização do Tigre e do
Eufrates, enquanto a Hindu é a civilização do Indo, e a Chinesa é a do Huang-Ho. As civilizações
desenvolvidas em outros períodos mais recentes que tiveram maior impacto social também
se desenvolveram em torno de importantes pontos de água, como no caso Civilizações pré-
-colombianas peruanas: civilização Inca, Moche e Nasca (sendo as duas ultimas pré-incas) e
meso-americanas em torno dos vales costeiros da América do Sul e da América Central, da
Khmer em torno do Mekong, das Elam e Suziana em volta do rio Dez (no sudoeste do Irã) e
da Helmand ao longo do rio Helmand, localizado entre o atual Afeganistão e o Irã. As civiliza-
ções árabes, que tiveram origem em áreas desérticas, também se desenvolveram em torno dos
oásis, de onde se expandiram para vales luviais, ou seja, de pontos com abundância de água
para pontos com ainda maior quantidade de água.
Todas as grandes migrações humanas, bem como a criação de vilas e comunidades, têm
sido associadas à procura de áreas irrigadas e vales adequadamente supridos de água, onde
os grupos humanos se assentaram. O transporte na antiguidade era facilitado pelas hidrovias,
com os consequentes beneícios derivados do comércio e das trocas.
As civilizações desenvolveram-se onde os vales estavam sujeitos a cheias recorrentes, que,
por sua vez, trouxeram a irrigação natural das enchentes a áreas para onde os rios levavam,
junto com a água, nutrientes adequados ao desenvolvimento da agricultura.
Assim que os grupos humanos se assentavam em torno do vale, surgia a necessidade de
controlar minimamente a água, a im de satisfazer as demandas e assegurar sua distribuição
equitativa entre os diferentes usos e usuários. Essa necessidade levou ao desenvolvimento
dos primeiros conjuntos ou sistemas de leis relativas às águas. Seu crescimento, persistência e
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PRINCÍPIOS DE DIREITO E ADMINISTRAÇÃO DE ÁGUAS NACIONAIS E INTERNACIONAIS
características variavam, dependendo de muitos fatores, como as condições geoísicas e
climáticas locais, os contextos socioeconômicos e gerenciais e as crenças religioso-ilosó-
icas das populações em questão.1
Nas regiões de água abundante, o controle visava, principalmente, evitar seus efeitos
destrutivos, como os sistemas de alerta e controle de enchentes, a recuperação do solo e a
construção e a manutenção de represas e açudes. Em áreas de pouca água, esse controle
visava à conservação dos estoques e distribuição adequada da pouca água disponível; os
regulamentos hídricos eram mais detalhados e restritivos. É necessário enfatizar que, nos
primeiros regulamentos hídricos, a natureza religiosa da água, como dádiva, recompensa
ou castigo da natureza, de Deus ou dos deuses, sempre estava presente, à exceção da China.
Além disso, a quantidade de trabalho necessário para o êxito das atividades de desen-
volvimento e conservação dos recursos hídricos foi um fator importante que determinou
e inluenciou a organização socioeconômica e o crescimento das civilizações hidráulicas.
Pode-se dizer, também, que o desenvolvimento e o crescimento das primeiras civiliza-
ções hidráulicas estiveram estreitamente relacionados com o grau de eicácia dos controles
gerencial-administrativos, religiosos e jurídicos que incidiam sobre o uso da água; por outro
lado, uma menor preocupação da sociedade em relação ao gerenciamento hídrico foi uma
das principais causas do subsequente declínio e, algumas vezes, do desaparecimento das
primeiras civilizações hidráulicas.2 Um exemplo típico é o desaparecimento da civilização
Mesopotâmica como consequência da diminuição do controle administrativo dos canais,
que icaram assoreados. Da mesma forma, ao longo da história, a intervenção de invasores
estrangeiros, com a destruição das obras hidráulicas e a ruptura do gerenciamento da água
existente, também provocou o desaparecimento de certas civilizações hidráulicas. Como
bons exemplos, temos a destruição por Tamerlane das obras de retenção no vale baixo do
rio Helmand, no atual Afeganistão, no século XIV, que levou ao desaparecimento da comu-
nidade e à desertiicação da área; a destruição das canalizações do rio Neghev, parte dos
aquedutos romanos, pelos bárbaros; e das obras hidráulicas cingalesas.
2.2 A DIFICULDADE DO ESTUDO DAS PRIMEIRAS
REGULAMENTAÇÕES DA ÁGUA
São muitas as fontes de estudo do direito primitivo em geral, mas para a análise do antigo
direito de águas em particular, há três fontes relevantes. A primeira são as observações
de autores passados e atuais sobre a vida e as leis dos povos antigos; a segunda consiste
nos textos antigos e nas compilações geralmente denominadas de “códigos”, que são um
apanhado do desenvolvimento histórico do direito primitivo; a terceira é representada por
1 Para uma descrição das primeiras civilizações hidráulicas: Pan American Union, Irrigation Civilizations, a Com-
parative Study, Washington D. C., 1955; STEWARD, J., Cultural Casualty and Law: a trial formulation of deve-
lopment of early civilizations, in: American Anthropologist, 51, 1, 1949; STEWARD, J., Evolution and Progress,
in: Anthropology Today, University of Chicago Press, Chicago, 1953; WITTFOGEL, K., Oriental Despotism, Yale
University Press, 1957; DROWER, M. S., Water Supply, Irrigation and Agriculture, in: A History of Technology,
Vol. 1, Clarendon Press, Oxford, 1956.
2 Para uma descrição dessa situação, ver: CAPONERA, D. A. Water Laws in Hydraulic Civilizations, in: Festschrift
für Karl Wittfogel, Society and History, Mouton Publishers, The 17 Hague, Paris, New York, 1978.
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