Primitive accumulation, expropriation and legal violence: expanding the borders of critical sociology of law/Acumulacao primitiva, expropnacao e violencia juridica: expandindo as fronteiras da sociologia critica do direito.

AutorGoncalves, Guilherme Leite
  1. Introducao (1)

    A critica social sempre encontrou dificuldades para conhecer o fenomeno juridico. Na verdade, seu principal obstaculo tem sido um desejo (que de tempos em tempos reaparece) de esbocar um programa normativo para o direito, que fosse capaz de induzi-lo como meio de emancipacao, transformacao social ou bastiao das classes oprimidas. Esse desejo tem, por diversas oportunidades, gerado serios deficits analiticos e descritivos nas formulacoes da sociologia critica do direito.

    Tais deficits podem ser encontrados tanto em um nivel macro quanto microssociologico. Em relacao ao primeiro, o desejo por um programa normativo tem levado a sociologia critica do direito a nao conseguir perceber a ordem juridica enquanto uma das estruturas fundamentais do capitalismo. Em relacao ao segundo nivel, ele tem desprovido a sociologia critica do direito de instrumentos analiticos para compreender as reestruturacoes regulatorias promovidas nas diversas fases da acumulacao do capital. Esse ultimo problema fica ainda mais claro quando os diferentes programas normativos sao confrontados com as transformacoes juridicas e institucionais do neoliberalismo. Indiferente a isso, o desejo permanece, todavia, contrafactual e se converte em idealismo juridico.

    Tomarei esse desejo como o ponto de partida para investigar uma das principais questoes epistemologicas da sociologia critica do direito: a possibilidade (limites e extensao) de se conhecer a reproducao socio-juridica do capitalismo. Essa investigacao sera conduzida a partir de um dialogo com o debate sociologico desenvolvido em lingua alema. Outras referencias teoricas e empiricas (como, por exemplo, David Harvey e Edward Palmer Thompson) serao todavia mencionadas, mas apenas no ambito desse dialogo. (2)

    Em primeiro lugar, pretendo mostrar, a partir de uma critica a teoria normativa do direito de Jurgen Habermas, que o desejo acima mencionado renunciou a oferecer uma resposta a questao epistemologica citada e, com isso, abandonou o campo da critica social em favor do liberalismo juridico (Item 2). Em seguida, analisarei de que forma a sociologia critica do direito reagiu a esse risco por meio da critica a forma juridica. Com essa ultima, foi possivel reconhecer nao apenas que o dever ser ja se encontra realizado nas estruturas de desigualdade do capitalismo, mas tambem a relacao entre forma juridica e forma da mercadoria. Pretendo sustentar, todavia, que a critica a forma juridica nao esgota as possibilidades de se conhecer a reproducao sociojuridica do capitalismo (Item 3).

    Meu objetivo e demonstrar que, ao lado da critica a forma juridica, a teoria da acumulacao primitiva tem um enorme potencial em fazer avancar a sociologia critica do direito em sua questao epistemologica fundamental (Item 4). Para isso, pretendo reconstruir os principais autores dessa teoria (repito: no ambito do debate alemao) e explicar as condicoes de desenvolvimento do capitalismo com base em uma repeticao permanente dos processos de acumulacao primitiva. Em seguida, observarei a configuracao juridica dessa etapa capitalista expansionista. Minha hipotese e que, nessas condicoes, o direito aparece como violencia juridica explicita e prescricao expressa da desigualdade. Enquanto tal, ele e constituido pelos discursos juridicos (sobretudo, os de direitos humanos) que produzem othering, pela ordem juridica da privatizacao (principalmente, as parcerias publico-privadas) e pelas tecnicas repressivas do direito penal (que criminalizam os movimentos sociais e a pobreza por meio, por exemplo, de legislacoes contra o financiamento ao terrorismo).

  2. Direito e capitalismo: o carater idealista da critica antiprodutivista

    Nao e recente o debate sobre os efeitos produzidos na teoria critica como um todo pelo chamado "giro antiprodutivista" do pensamento social desde os anos 1970 (entre outros, Antunes 2013: 112; Dorre/Sauer/Wittke 2012: 13ss.; Ruddenklau 1982; Streeck 2013). Como motor dessa reorientacao, especulacoes a respeito de uma possivel crise da sociedade do trabalho e de suas energias utopicas comecaram a se tornar diagnosticos dominantes no interior das proprias teorias criticas (Habermas 1973 e 1985). Tais diagnosticos sustentavam-se, entre outras, em interpretacoes que atribuiam ao advento do Estado de Bem-Estar o carater apaziguador da luta de classes e se desenvolveram com base em leituras sobre a chamada sociedade posindustrial, que teria levado a formacao de uma massa superflua por meio da substituicao via avanco tecnologico do trabalho vivo pelo morto (Bell 1973; Gorz 1983). Essas especulacoes levaram uma parcela significativamente relevante da critica social a destituir a centralidade do trabalho como categoria sociologica fundamental e a realizar um progressivo abandono do conflito socioeconomico como objeto de investigacao (Offe 1989).

    Nao se trata aqui de reconstruir todas as variacoes teoricas que emergiram do giro antiprodutivista. O mais importante e observar que, quando se ocupa do fenomeno juridico, esse giro tende a se desdobrar em uma concepcao idealista, que e incapaz de apreender os mecanismos de reproducao do direito e seu papel na sociedade capitalista. Para demonstrar essa afirmacao, analisarei aquela que, originaria da teoria critica, se tornou uma das mais influentes analises sobre o direito nas ultimas decadas. Refirome a teoria de Habermas. (3)

    2.1. Centralidade do direito na critica antiprodutivista

    Do ponto de vista dessa teoria, o giro antiprodutivista levou a formulacao de um conceito de sociedade bipartida, em que tanto a categoria trabalho quanto o conflito socioeconomico foram reduzidos a uma mera ameaca destrutiva aquilo que seria o espaco de sociabilidade, agora definido apenas por interacoes comunicativas.

    Com isso, Habermas propoe uma reorientacao da critica social, dirigindo suas atencoes para a entao chamada esfera da interacao, ambito que seria formado apenas por acoes comunicativas mediadas simbolicamente, que se orientam segundo normas compreendidas por mais de um sujeito agente (Habermas 1968, 77ss). A referencia para essa mudanca teorica, como se sabe, e a distincao interacao/trabalho que, no transcorrer da obra de Habermas, se transformou na distincao sistema/mundo da vida.

    Para Habermas, o advento da sociedade moderna implicou a emergencia de uma estrutura social altamente diferenciada em funcoes, competencias, interesses etc. Tais diferencas sao, porem, compreendidas nos termos da oposicao entre mundo da vida e sistema. Tal oposicao, conforme Habermas (1988: 258), e um processo social segundo o qual o avanco da racionalizacao e da diferenciacao levou ao desacoplamento de ambas as esferas, que passaram a se distinguir simultaneamente uma da outra. A sociedade moderna e, assim, dividida em dois ambitos. De um lado, o mundo da vida, horizonte do agir comunicativo livre de coacao e pressao, que se estrutura por meio da socializacao das personalidades individuais (processos de aprendizagem que constituem a identidade pessoal necessaria a interacao), da reproducao cultural (repositorio de experiencias utilizado pelos atores para a interpretacao de seus diversos contextos) e da integracao social (conjunto de normas legitimas que viabilizam a solidariedade), onde estao ancoradas a esfera privada, a sociedade civil e a esfera publica (Habermas 1988: 208 ss). De outro, se encontra o sistema, espaco de reproducao de acoes instrumentais e estrategicas orientadas por uma racionalidade com respeito aos fins, em que operam os meios dinheiro e poder (Habermas 1998: 428).

    Toda a formulacao habermasiana se desenvolve em torno da questao da disrupcao do mundo da vida pela expansao do sistema. O problema esta no desequilibrio de carater patologico pela expansao colonizadora do sistema sobre o mundo da vida (Habermas 1988:445-594). Essa ideia de desequilibrio foi desenvolvida no transcorrer da obra de Habermas por meio do problema teorico das condicoes da integracao social (Schuartz 2002).

    Para Habermas (1998, 42), em funcao da superacao da premodernidade pelo desencantamento do mundo (Entzauberung der Welt), a integracao social tornou-se dependente exclusivamente de processos de entendimento e discursivos. Esses processos exigem normas de coordenacao que, ao nao poderem recorrer a um conteudo moral unitario como na sociedade pre-moderna, aumentam o risco de uma diferenciacao interna ao mundo da vida entre sistema e mundo da vida, o que gera interacoes estrategicas e dissenso no proprio mundo da vida que, como ideal regulativo, deveria visar justamente o contrario, isto e, deveria visar o consenso. E mais: como a modernidade tambem depende do sistema que passa a se desacoplar do mundo da vida, libera uma escala ainda maior de acoes estrategicoinstrumentais, cujo resultado e a difusao social do dissenso. Para resolver esse problema da integracao social, Habermas coloca o direito em cena.

    Nas palavras do autor, o direito permite a "regulacao normativa de interacoes estrategicas sobre as quais os atores se autocompreendem" (Habermas 1998: 44). Dessa perspectiva, o direito assume a capacidade de vincular as duas dimensoes separadas--a comunicativa, voltada ao entendimento, e a estrategico-instrumental, voltada aos fins. Seu argumento se desenvolve nos seguintes termos: como as normas juridicas obrigam universalmente a todos os participantes de uma interacao estrategica, contem em si o motor da integracao social, isto e, ainda que as duas dimensoes citadas estejam separadas aos olhos dos atores, as normas podem satisfazer as duas dimensoes contraditorias (Habermas 1998: 44). Habermas sustenta que, para a acao estrategico-instrumental, o direito funciona como uma "limitacao factual", que fixa regras as quais os atores veem-se obrigados a adaptar seus comportamentos; para a acao orientada ao entendimento, ele impoe obrigacoes reciprocas e, com isso, torna possivel o reconhecimento da intersubjetividade (Habermas 1998: 44). Diante desse quadro, o autor conclui que o...

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