Princípio da dignidade da pessoa humana

AutorAugusto César Leite de Carvalho
Páginas15-45

Page 15

Conforme sugerimos em fragmentos de texto anterior5, uma tarefa deveras interessante seria a de identificar os direitos sociais que salvaguardariam, em qualquer sítio onde se realizasse o labor humano, as condições de trabalho mínimas, abaixo das quais não haveria trabalho digno. Estaríamos a contrastar a diversidade das pautas de direitos sociais com a necessária transcendentalidade de um atributo que é imanente ao gênero humano em qualquer atmosfera cultural, qual seja, o atributo da dignidade.

Embora se alardeie o seu caráter difuso ou impreciso, o conceito dignidade humana não pode ser simplesmente sublimado, antes se exigindo a depuração de seu possível significado, a sua latitude conceitual. Há quem distinga, como Jorge Miranda, a dignidade humana da dignidade da pessoa humana, atentando, então, para o que se dirige, nessa expressão particularista, ao homem concreto e individual, à sua realidade idiossincrática, inextensível desde logo a toda a humanidade6.

Ainda no plano semântico, nota-se que a palavra dignidade possui tríplice sentido, pois qualifica, à primeira vista, um modo de proceder e também a pessoa que assim procede: o sujeito é digno porque se comporta dignamente. O seu terceiro sentido - o único que nos interessa de imediato - não deriva de uma conduta, nem mesmo de um padrão de conduta, senão de uma qualidade inerente ao ente, homem ou mulher, não importando seu modo de conduzir-se. A dignidade da pessoa humana é, já agora, um pressuposto de qualquer conduta, um limite externo e de caráter tutelar imposto à ação.

A dignidade humana não limita apenas os atos de poder. Estende-se esse limite também ao mundo potencial dos contratos, vale dizer, à esfera de liberdade - que tem, em paradoxo apenas aparente, também a dignidade humana como fundamento. Talvez por isso, e com alguma fineza de espírito, Flauber nos teria provocado: "Que é, pois, a igualdade, se não a negação de toda liberdade, de toda superioridade e até da Natureza mesma?")7.

Page 16

Daí se depreende uma evidente correlação lógica: se a dignidade é uma qualificação comum a todos os seres humanos, a sua realização normativa terá sempre a igualdade como pressuposto. As pessoas seriam igualmente dignas. Isso nos remete, como é fácil perceber, a uma concepção de igualdade material bastante afinada com o ideário da Ilustração e aparentemente estranha a uma vertente filosófica que resgate, como propõe Hayek, a preeminência do sujeito em uma sociedade livre8.

É como se todos tivéssemos uma porção de humanidade que nos faria credores do mesmo tratamento, não obstante as nossas pontuais dessemelhanças. Nesse bocado de gente residiria nossa intangível dignidade, vale dizer, a dignidade da pessoa humana - que se reporta, ao dizer de Jorge Miranda, "a todas e cada uma das pessoas e é a dignidade da pessoa individual e concreta"9.

Um conceito abstrato de dignidade humana, com influência no mundo católico, é decerto o que se extrai de fascículo emblemático da encíclica Rerum Novarum de Leão XIII:

"A ninguém é lícito violar impunemente a dignidade do homem, do qual Deus mesmo dispõe com grande reverência, nem colocar impedimentos de modo a impedir que ele alcance a vida eterna; pois, nem mesmo por livre arbítrio, o homem pode renunciar a ser tratado segundo sua natureza e aceitar a escravidão do espírito; porque não se trata de direitos cujo exercício seja livre, senão de deveres para com Deus que são absolutamente invioláveis."

Após afirmar que era impossível cumprir o desígnio (pregado pelos socialistas) de ver a todos, em uma sociedade civil, elevados ao mesmo nível, e reiterar Santo Tomás de Aquino ao dizer que "a propriedade particular é um direito natural do homem: o exercício desse direito é coisa não apenas permitida, sobretudo a quem vive em sociedade, senão absolutamente necessária", Leão XIII insinua o possível significado da dignidade humana:

Page 17

"Não é justo nem humano que se exija do homem tanto trabalho a ponto de fazê-lo, por excesso de fadiga, embrutecer o espírito e enfraquecer o corpo. A atividade do homem, limitada como a sua natureza, tem limites que não se podem superar. O exercício e o uso a aperfeiçoam, mas é preciso, de vez em quando, que se a suspenda para dar lugar ao repouso."

A dignidade da pessoa humana estaria malferida sempre que o limite razoável de fadiga, abstratamente considerado, fosse excedido para o homem ou a mulher que estivessem a prestar trabalho. Mas esse significado, sendo embora formal (porque abstrato, não poderia ser adotado pela teoria positivista enquanto não fossem superados dois obstáculos: a a sua inspiração mística ou religiosa (assim é porque Deus não tolera a fadiga e somente por isso, ou isso basta; b a existência, em uma análise a priori, de trabalho que se revelaria indigno sem o componente da fadiga, a exemplo daquele que se realiza em tenra idade, ou sob ameaça física ou moral, ou ainda a envolver o comércio do corpo humano, ou enfim a implicar, de algum modo, a degradação da pessoa que trabalha.

Parece-nos, então, que a melhor - e não por acaso a mais festejada - contribuição do positivismo jurídico, a respeito do sentido de dignidade da pessoa humana, teria sido legada por Kant, o filósofo setecentista que iluminou o mundo da razão a partir da pequena cidade de Konigsberg, onde passara toda a vida.

É evidente que Kant não podia ambientar o seu conceito de dignidade sob a perspectiva do direito social, inclusive porque seguia Rousseau - a quem reverenciava como "o Newton da moral" - e concebia a constituição da sociedade civil a partir da vontade geral: a expressão da consciência pura de cada indivíduo, voz interior autónoma que Rousseau supõe idêntica para todos)10. Gurvitch explica:

"Se todo direito tem como fundamento último a vontade geral, que não é outra coisa senão um ingrediente imanente à consciência individual, e se toda possibilidade de fazê-la triunfar reside na instituição de uma relação contratual, todo direito se reduz unicamente ao direito individual.")11

Mas, como Rousseau, também Kant diz ser a dignidade moral indissociável da pessoa humana, dotada de razão e de vontade livre, sem que mais nenhum outro ser vivente o seja. Dignidade, assim, é "o atributo de um ser racional que não obedece a

Page 18

nenhuma outra lei senão a que ele mesmo se dá"12. Nesse contexto, Kant distingue entre aquilo que tem preço e o que tem dignidade:

"No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pór em vez dela qualquer outro como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço e, portanto, não tem equivalente, então ela tem dignidade".

Ora, se o homem é o único ser racional e pode fixar fins para si próprio, deverá ele, assim abstratamente considerado, ser o fim em si mesmo de toda intervenção humana. Arrematava Kant: "a pessoa não pode ser tratada (por outra pessoa ou por si mesma) meramente como um meio, se não que tem que ser, em todo momento, utilizada como fim; nisso consiste a sua dignidade".

A dignidade da pessoa humana e os direitos da personalidade

Ao consagrar a dignidade humana como fundamento da ordem republicana, a Constituição - art. 1º, III - situa o homem, pois, na centralidade do sistema jurídico e não permite que se possa atribuir, a norma alguma, significado ou eficácia destoantes de tal perspectiva. A guardar coerência sistémica, o art. 5º da Constituição normatiza: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".

Não por acaso, o art. 1º da Declaração Universal de Direitos Humanos consagra que "todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos". Iguais em dignidade. Em outras palavras: a condição humana, naquilo em que equaliza todos os seres racionais e os faz assim revestidos de igual dignidade, induz à inviolabilidade de todos os direitos inerentes à personalidade.

A partir desse ponto é possível perceber a timidez ou talvez a incipiência, no plano das relações existenciais, daqueles que elaboraram o texto da Lei n. 13.467/2017, responsável pela modificação de mais de cem artigos da Consolidação das Leis do Trabalho, no Brasil.

É que a Teoria do Direito13 há muito percebeu a impropriedade de conceber os direitos da personalidade como vários direitos autónomos (vida, liberdade, honra,

Page 19

privacidade etc. e evoluiu para prestigiar a vertente monista, segundo a qual há um só direito geral da personalidade, com desdobramentos relacionados à integridade física, moral ou intelectual que protegem o homem em sua dimensão existencial -não puramente patrimonial -, assegurando pretensão reparatória sempre que vulnerada qualquer dessas suas titularidades. Em tal estágio da teoria jurídica, impós-se verificar que os catálogos de direitos da personalidade jamais seriam exaurientes, ou numerus clausus, na mesma proporção em que se mostra inviável preordenar todas as possíveis projeções da condição humana.

Seguiu-se, ainda mais, a compreensão de estar a Constituição a consagrar uma cláusula geral de tutela da personalidade ao enlevar a dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos, respectivamente, a fundamento e a princípio da República (art. 1º, III e art. 4º, II, associando-as aos objetivos de "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (art. 3º, III, num plexo de axiomas jurídicos que converte a personalidade de fonte de um direito geral à categoria de valor máximo do ordenamento, a reclamar não somente a titularidade do direito a eventual ressarcimento quanto a promoção de medidas com viés eman-cipatório, ou de promoção do ser humano.

...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT