O princípio da separação de poderes

AutorJuan Carlos Cassagne
Páginas145-209
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CAPÍTULO III
O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO
DE PODERES
Sumário: III.1 Sobre a origem da doutrina da separação de poderes: as
características principais que envolvem a concepção política de Montes-
quieu. III.2 A separação de poderes e o Estado de Direito. A evolução
do Estado de Direito. O Estado Subsidiário. Populismo e Estado. III.3
A finalidade básica da teoria da separação de poderes. III.4 As confusões
terminológicas: os conceitos de poder, órgão e função. III.5 Sobre a
função administrativa. III.5.1 Concepções subjetivas ou orgânicas. III.5.2
O critério objetivo ou material. III.5.3 Outras teorias. III.6 Continuação:
as funções normativa ou legislativa e jurisdicional da Administração Pú-
blica. III.6.1 A atividade regulamentar é de substância normativa ou le-
gislativa. III.6.2 As funções jurisdicionais da Administração. III.7 Con-
tinuidade da jurisprudência emitida pelo Tribunal a partir do caso
“Fernández Arias”. III.8 Resumo sobre a interpretação da doutrina da
separação de poderes na Constituição argentina. III.9 A independência
do Poder Judiciário: antecedentes hispânicos das prescrições constitucio-
nais. III.9.1 A proibição de exercer funções judiciais por parte do Rei e
os Tribunais. III.9.2 A inamovibilidade dos juízes. III.9.3 A criação do
Tribunal Supremo. III.10 A independência do Poder Judiciário como
princípio e garantia do regime democrático e republicano. III.11 Senti-
do atual da separação de poderes. III.12 O princípio da independência
das autoridades reguladoras. III.13 Constitucionalidade da criação das
autoridades regulatórias independentes.
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JUAN CARLOS CASSAGNE
III.1 Sobre a origem da doutrina da separação de poderes:
as características principais que envolvem a concepção
política de Montesquieu
A unidade do poder estatal não foi principalmente debatida no
campo da filosofia política nem no da doutrina constitucional. Na era
Moderna foi publicado na França um livro destinado a marcar dali em
diante o rumo de todos os Estados democráticos da Europa e América,
embora sua interpretação e consequente aplicação na doutrina consti-
tucional não tenham sido sempre as mesmas, devido ao peso das singu-
laridades de cada país (história, tradições, ideologias políticas etc.).
A influência desse livro, intitulado O espírito das leis, publicado em
1748 por Charles-Louis de Secondat, barão de Brède e de Montesquieu,
ainda continua gravitando sobre os Estados modernos, mesmo com as
adaptações que a realidade política e social vai impondo. Como veremos
mais adiante, a gravitação da teoria da separação de poderes não se com-
promete com o direito constitucional, mas com a abordagem da questão
das funções estatais e as relações entre a Administração (ou o Governo,
conforme terminologia europeia) e, os outros poderes são configurados
como um dos princípios fundamentais do direito administrativo con-
temporâneo. Pode-se inclusive afirmar que, ao lado dos princípios da
supremacia constitucional, essa obra constitui um dos grandes princípios
do Direito Público (constitucional e administrativo).
A teoria da separação dos poderes foi objeto de múltiplos e va-
riados desenvolvimentos voltados para expressivos estudos e pesquisas,
tanto no direito comparado quanto em nosso país382, e a maior parte
de seus autores coincidiu, ao afirmar que sua paternidade corresponde
a Montesquieu383, sem negar as influências de outros filósofos que
382 BOSCH, Jorge Tristán. Ensayo de interpretación de la doctrina de la separación de los
poderes. Buenos Aires: Universidade de Buenos Aires, Faculdade de Direito e Ciências
Sociais, 1944, p. 35 ss.
383 BIELSA, Rafael, no “Prólogo” à obra de BOSCH, Jorge Tristán. Ensayo de
interpretación de la doctrina de la separación de los poderes. Buenos Aires: Universidade de
Buenos Aires, Faculdade de Direito e Ciências Sociais, 1944, p. 9. Alguns atribuíram
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CAPÍTULO III – O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES
abordaram o assunto, como Locke. O certo é que a originalidade de sua
concepção (especialmente no que se refere ao equilíbrio entre os órgãos
que exercem as funções administrativas e legislativas com o órgão judi-
cial) não pode ser colocada em questão.
Sem analisar a totalidade do pensamento exposto por Montesquieu
em diferentes capítulos da referida obra e nas Lettres persanes [Cartas
persas ] ou em Considérations sur les causes de la grandeur des Romains et de
leur décadence [Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e
sua decadência]384, alguns limitaram o exame ao Capítulo VI do Título
XI, dedicado à Constituição inglesa.
Para desvendar o pensamento de Montesquieu sobre a separação
dos poderes, cabe notar que o desenvolvimento escasso dos conceitos
utilizados pela ciência política da época provocou uma série de confusões,
muitas das quais chegaram até os dias de hoje, sobre os conceitos de poder,
órgão e função, cujo sentido correto abordaremos no ponto seguinte. Na
realidade, mais do que a confusão conceitual que costuma ser atribuída a
Montesquieu em O espírito das leis, parece mais lógico sustentar que se
trata de polissemias próprias da época. Entretanto, se o termo segundo o
sentido técnico atual for substituído em cada lugar da obra, é possível
descobrir a trama da verdadeira doutrina que expõe, mesmo que muitas
vezes os conceitos apareçam entrelaçados (v.g., poder e função). De algu-
ma maneira, ainda hoje, os diferentes conceitos utilizados por Montesquieu
sobre o poder continuam em uso, por comodidade de linguagem.
Essa trama foi desenvolvida de forma notável por Jorge Tristán
Bosch, marco de nossa vocação pelo direito administrativo, a quem
seguimos na parte medular de suas opiniões sobre a referida teoria e as
funções do Estado.385
a paternidade da teoria da separação de poderes a LOCKE, mas ele não concebeu ao
Poder Judiciário como um órgão separado e independente.
384 BOSCH, Jorge Tristán. Ensayo de interpretación de la doctrina de la separación de los poderes.
Buenos Aires: Universidade de Buenos Aires, Faculdade de Direito e Ciências Sociais,
1944, pp. 35-37, cujo trabalho rigoroso realizado em 1941, no Seminário dirigido pelo
Professor BIELSA constitui uma das realizações mais completas sobre a doutrina comparada.
385 Ver: Ensayo de interpretación de la doctrina de la separación de los poderes. Buenos Aires:
Universidade de Buenos Aires, Faculdade de Direito e Ciências Sociais, 1944, p. 45 ss.

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