O princípio das mãos limpas como fundamento jurídico para o exame da arguição de ilegalidade

AutorAna Rachel Freitas da Silva
Páginas109-195
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Capítulo 2
O PRINCÍPIO DAS MÃOS LIMPAS COMO
FUNDAMENTO JURÍDICO PARA O EXAME DA
ARGUIÇÃO DE ILEGALIDADE
Considerando as limitações da abordagem jurisdicional da ilegalidade,
descritas no capítulo anterior, defendemos a aplicação do princípio das mãos
limpas como alternativa ao uso do requerimento de legalidade. A construção do
argumento jurídico demanda, a priori, que a arbitragem de investimentos seja
vislumbrada pelo prisma do Direito Internacional Público, justificando,
portanto, a aplicação dos princípios gerais de direito como fonte normativa.
Defende-se que as mãos limpas podem ser consideradas um princípio geral de
direito e seriam aplicáveis à arbitragem investidor-Estado.
O capítulo aborda, ainda, alguns desafios vislumbrados no uso da
doutrina das mãos limpas como fundamento na arguição de ilegalidade, quais
sejam, a delimitação das condutas objeto da arguição de ilegalidade, a aplicação
da doutrina às ações de reparação e a identificação de reciprocidade entre as
condutas do investidor e do Estado. O último tópico reafirma a tese proposta -
da doutrina das mãos limpas como fundamento para a arguição de ilegalidade
- e estabelece as premissas a serem consideradas na construção do modelo.
2.1. Da aplicabilidade do princípio das mãos limpas na arbitragem de
investimentos
A arguição de ilegalidade, articulada a partir do princípio das mãos
limpas, tomado como princípio geral de direito, oferece uma alternativa às
limitações do manejo jurisdicional da arguição de ilegalidade, baseado no
requerimento de legalidade. Passaremos à demonstração dos fundamentos
jurídicos dessa abordagem da arguição de ilegalidade, adotando, como
premissa, que a arbitragem investidor-Estado baseada em tratado deve ser
considerada sob as premissas do Direito Internacional Público. Serão, portanto,
aplicáveis aos julgamentos os princípios gerais de Direito.
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Princípios gerais do direito também resguardam as relações privadas.
Negócios fundamentados em fraude e corrupção prejudicam diretamente o
Estado envolvido, mas alcançam, ainda que indiretamente, a segurança jurídica
dos negócios internacionais. Além disso, o recurso aos princípios gerais de
direito permite o desenvolvimento do Direito Internacional dos Investimentos
enquanto especialidade do Direito Internacional, contribuindo para decisões
mais consistentes, previsíveis e fundamentadas.
Admitida a aplicação dos princípios gerais de direito, demonstraremos
que o princípio das mãos limpas cumpre os requisitos para ser considerado
fonte normativa nos termos do art. 38 do Estatuto da ICJ. Está presente nos
ordenamentos jurídicos dos Estados e pode ser identificado em decisões de
tribunais internacionais.
2.1.1. Princípios gerais de Direito como fonte de obrigações internacionais
Apesar da arbitragem de investimentos ter evoluído sob a influência da
arbitragem contratual314, entendemos que são aplicáveis paradigmas
interpretativos e princípios de Direito Internacional Público315. Alguns autores
apontam a dualidade público-privado da arbitragem investidor-Estado,
questionando a natureza da norma em estudo, se seria uma especialidade do
Direito Internacional ou um aspecto das relações particulares envolvendo
314São indicados como precursores da arbitragem investidor-Estado as arbitragens ad hoc
autorizadas por contratos de concessão para a exploração de recursos naturais internacionalizados
(COSTA, José Augusto Fontoura. Direito Internacional do Investimento Estrangeiro. Curitiba:
Juruá, 2010, p. 183). As regras da UNCITRAL, por exemplo, foram elaboradas originalmente
para tratar de disputas comerciais. Apesar disso, são indicadas em muitos tratados de
investimentos como regras aplicáveis à disputa. (UNCITRAL. Report of the Secretary General
Preliminary Draft Set of Arbitration Rules for Optional Use in Ad Hoc Arbitration Relating to
International Trade UNCITRAL Arbitration Rules, UN Doc A/CN.9/97 (4 November 1974).
Disponível em: < https://www.uncitral.org/pdf/english/yearbooks/yb-1975-e/vol6-p163-180-
e.pdf>. Acesso em 3 de abril de 2017).
315 Sobre analogias do Direito Internacional do Investimento ver ROBERTS, Anthea. Clash of
Paradigms: Actors and Analogies Shaping the Investment Treaty S ystem. American Journal of
International Law, Vol. 107, 2013, p. 45-94. Disponível em:
. Acesso em 23 de agosto de
2017 e PAPARINSKIS, Martins. Analogies and Other Regimes of International Law. In:
DOUGLAS, Zachary; PAUWELYN, Joost e VIÑUALES, Jorge E. The Foundations of
International Investment Law: Bringing Theory Into Practice. Oxford: Oxford University Press,
2017, p. 73-107.
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Estados316. Schreuer defende que a arbitragem de investimentos tem uma
natureza híbrida “na fronteira entre o direito internacional e o doméstico”317.
Apesar dessa característica, defende que o Direito Internacional é relevante para
as controvérsias de investimentos. Cinco caraterísticas aproximam essa
arbitragem do DIP: a) a participação do Estado que é sujeito de direito
internacional; b) o papel da arbitragem de investimentos como substituto da
proteção diplomática e do litígio em cortes locais; 3) a jurisdição construída a
partir de consentimento contido em tratado internacional; 4) o fato das ações
versarem sobre violações de standards de direito internacional; e 5) direito
internacional ser considerado como a fonte normativa primária aplicável318.
Zachary Douglas também defende a tese de que a arbitragem de
investimentos, baseada em tratado, seria um mecanismo híbrido resultante da
adoção de elementos derivados tanto do direito internacional público, quanto
da arbitragem comercial319. Essa teoria reconhece que as obrigações dos
Estados para com os investidores estrangeiros estão situadas em dois níveis: um
contratual, que provém dos instrumentos firmados por Estados e investidores
estrangeiros e o nível do tratado, firmado entre Estados. Enquanto as primeiras
seriam de natureza privada, as segundas seriam de natureza pública. Considera,
ainda, que os procedimentos utilizados para a solução de controvérsias teriam
suas raízes na arbitragem comercial e que as proteções contidas nos tratados
seriam de titularidade direta dos investidores320.
O fato de haver dois tipos de obrigação contratual e oriunda de tratado
não significa que a responsabilidade do Estado por violações aos
investimentos estrangeiros deixa de ser um exercício de aplicação das regras e
princípios de direito internacional. Essa caracterização como um sistema
316 MILLS, Alex. The public-private dualities of international investment law and arbitration. In:
Brown, Chester e MILES, Kate (org). Evolution in Investment Treaty Arbitration. Cambridge
University Press, 2011, p. 97-116.
317 SCHREUER, Christoph. The Relevance of Public Internacional Law in International
Commercial Arbitration: Investment Disputes. Disponível em:
http://www.univie.ac.at/intlaw/pdf/csunpublpaper_1.pdf Acesso em 30 de abril de 2016.
318 Idem.
319 DOUGLAS, Zachary. The Hybrid Foundations of Investment Treaty Arbitration. The British
Yearbook of International Law, vol. 74, n. 1, 2003, p. 151-289.
320 DOUGLAS, Zachary. International Law of Investment Claims. New York: Cambridge
University Press, 2009, p. 30-36.

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