O Princípio de Proteção Integral da Criança e do Adolescente e seu Impacto nas Relações Jurídicas

AutorMariane Josviak/Regina Bergamaschi Bley/Silvia Cristina Trauczynski
Páginas30-41

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1. Introdução

Há livros que, embora simples, são escritos em voz alta1; este é um exemplo de artigo simples, porém também escrito em voz alta, que busca retratar o pensamento indutivo do jurista alagoano, Pontes de Miranda, em relação ao tema proposto.

Neste artigo, abordaremos como o princípio de proteção integral da criança e do adolescente, estabelecido no art. 227 da Constituição da República, repercute nas relações sociais onde há a presença desses vulneráveis.

Para revelar a importância desse princípio e o seu impacto nas relações jurídicas acima apontadas, será adotado o pensamento trifásico de Pontes de Miranda, exposto no livro Sistema de Ciências Positivas do Direito.

Assim, ao analisar o material jurisprudencial abaixo colacionado, percorreremos mentalmente a fase do pensamento empírico, passando depois pela indução, para, ao final, deduzirmos qual é a melhor forma de adaptar o indivíduo ao meio.2

Logo, a resposta dada não será questão opinativa, nem raciocínio mentalizado, em que o pensamento jurídico não tem correspondência com a realidade social.

Buscar-se-á, desta feita, trabalho científico, estruturado principalmente em bases sociológicas que coloque o direito em conexão com o meio, corrigindo condutas ou leis que se revelem autoritárias, despóticas ou fruto do voluntarismo do Poder Legislativo.

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Trabalharemos rente à realidade para aclarar que o direito, no tempo-espaço social, nem sempre foi o mesmo, consoante se percebe ao analisar o Estado Liberal, Social e Democrático de Direito.

No Estado Liberal, pregava-se uma igualdade formal entre as pessoas, não existindo qualquer distinção entre ricos e pobres, maiorias e minorias, vulneráveis e pessoas abastadas. Todos eram vistos como iguais pelo sistema jurídico.

Esse Estado surgiu em decorrência da necessidade de rompimento com o Absolutismo, dando início a uma das maiores explorações de mulheres, crianças e idosos de que se tem notícia na história da humanidade.

Nesse período, foi constatada a existência de jornadas de trabalho extraordinárias de até 17 horas para esses oprimidos.

Os códigos foram elaborados sob o império de ditaduras, nas quais o ser humano não era tratado como um valor fundamental, existindo, assim, um grande descompasso entre as disposições do Código Civil e os valores e princípios estampados na Constituição.

O Juiz era apenas a boca da lei, um escravo, não havendo espaço para qualquer interpretação, produzindo-se um raciocínio simplesmente dedutivo.

A lei, portanto, era uma simples estrutura externa, formal, que deveria ser respeitada em razão do órgão que lhe dava origem. Nas palavras de Luiz Guilherme MARINONI "o direito estaria apenas na norma jurídica, cuja validade não dependeria de sua correspondência com a justiça, mas somente em ter sido produzida por uma autoridade dotada de competência normativa"3

O princípio da igualdade formal realizava um processo de despersonalização do ser humano. Consoante ensina o jurista Nelson ROSENVALD, "o processo de despersonalização do ser humano começa com a fragmentação da família, a eliminação de suas vestes e documentos, a substituição de seu nome por um número marcado no braço, tal como o gado".4

Segundo o pensamento de Marcos Bernardes de MELLO, "uma das formas da lei perder sua eficácia social ocorre quando ela é elaborada como forma de dominação, e não com o fito de adaptar o homem à sociedade"5

Nesse sentido, o erro dos racionalistas que elaboraram a lei no Estado Liberal foi de não considerar a existência de minorias que necessitavam de cuidados do Estado.

O Estado Social sucedeu ao Estado Liberal, estabelecendo novas premissas para a interpretação do ordenamento jurídico.

Na lição de Gregório Assagra de ALMEIDA, "o Estado Social se caracterizava pelo reconhecimento das minorias, propiciando uma igualdade material na sociedade constituída

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de explorados e abastados, garantindo-se tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação, assegurados a todos os cidadãos."6

Para Paulo LOBO, "o Estado Social é caracterizado pela intervenção estatal nas relações privadas, com o intuito de promover a justiça social e reduzir as desigualdades"7

Nesse período, exsurge a noção de igualdade material, concedendo tratamento adequado para a classe de vulnerárias existentes no Estado: crianças, adolescentes, idosos, consumidores. O Direito, assim, buscava reduzir as desigualdades sociais provocadas pelo Estado Liberal.

Nos anos 1970, ocorre uma crise do Estado assistencialista, pois essa intervenção do Estado na vida social não rendeu bons frutos, ocorrendo o inchaço da máquina governamental.

Por derradeiro, surge o Estado Democrático de Direito, inaugurado pela Constituição Federal de 1988, que tem a grande virtude de reconhecer a normatividade dos princípios constitucionais que, segundo Bernardo Gonçalves FERNANDES, "são dotados de vinculação aos órgãos encarregados pela atividade de aplicação e criação do direito".8

O jurista Gregório Assagra ALMEIDA ensina que "o Estado Democrático de Direito surge para operacionalizar um verdadeiro rompimento com as concepções capitalistas, portanto burguesas, do Estado Liberal Individualista, ainda impregnadas no WelfareState"9

A Constituição estabelece um sistema de regras e princípios abertos favoráveis ao intercâmbio de valores constantes na sociedade. O Juiz não é mais a boca da lei, nem sua decisão é fruto de simples pensamento dedutivo, muito menos as regras valem simplesmente por sua origem.

Em síntese, no Estado Democrático de Direito a Constituição prepondera sobre o direito infraconstitucional, ganhando peso de normatividade os princípios albergados no texto supremo. A Constituição passa a ser o centro do sistema, marcada por uma intensa carga valorativa; seus princípios passam a ter validade normativa, o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais são priorizados, e, por fim, o direito se aproxima do ideal de moral, ética e justiça.

Após essa pequena explanação, restou demonstrado que o Direito varia de tempos em tempos, não sendo algo perene e imutável como querem os jusnaturalistas.

Filiamo-nos, assim, ao entendimento de Pontes de Miranda, para quem o Direito "é produto instável de assimilação e de desassimilação psíquica, de lenta evolução, a refletir o desenvolvimento geral da sociedade, como obra de várias culturas, riquezas e civilização."10

Com efeito, no fio da história, a lei busca seu fundamento de validade no grupo social do qual emana lentamente até transformar-se sociologicamente em costume, que na verdade

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reflete valores sociais, que às vezes são dispostos em textos legais, como normas jurídicas ou princípios legais.

No entanto, muitos valores que ainda não alcançaram formalmente os textos legais podem penetrar no ordenamento jurídico por intermédio das cláusulas gerais que são normas legais elaboradas pelo legislador com grande conteúdo de generalidade e que abrangem todo um leque de casos.

Em nossa Constituição da República podemos identificar o princípio da dignidade da pessoa humana e o de proteção integral da criança e dos adolescentes, como exemplos de cláusula geral.

Em cada relação social trazida a juízo, terá o julgador, portanto, que identificar qual o valor social que penetra no ordenamento jurídico através desse portal (cláusula geral).

O mais importante nisso tudo é perceber que o Direito, no tempo, modifica-se, conforme modifica a energia da própria sociedade, vejamos o que ensina o estudante n. 1 do Brasil:

"Coerente em sua explicação da evolução do direito, em que este e fenómeno de energia, energia social, que não é menos energia que a cinemática, a radiante, a elétrica, a magnética, a térmica, a química, sendo 'o corpo social, como todos os corpos um complexo de energias', o autor defende uma posição de critério biológico fundamental. Neste sentido, o Direito é também um fenómeno natural, biológico, e 'o método que deve guiar a ciência jurídica é o mesmo que aqueles das ciências naturais, porque ela também o é."11

2. Dissimetria social

Antes de falarmos do princípio de proteção integral da criança e do adolescente, devemos responder a seguinte indagação: o que é o direito, como ele surge? Para nós a resposta mais precisa está com Pontes de Miranda, retratado no livro de Sylvio de MACEDO:

"Ele vê o equilíbrio e a simetria como leis universais, a que, naturalmente, estão sujeitas todas as coisas: minerais, vegetais, animais, humanos. Então a simetria dos geômetras, a retidão do pensar, a retidão do fazer e a retidão do agir, o equilíbrio de todas as formas vivas, o equilíbrio inorgânico, orgânico, e supraorgânico seriam matizes do equilíbrio universal, dessa imensa simetria cósmica e do equilíbrio interior. Nesse sentido é que o direito está presente em todas as coisas, inclusive no mundo inorgânico. Eis como interpretamos o conceito de Direito em Pontes de Miranda."12

O Direito nessa visão seria questão de equilíbrio, não só social, mas entre todas as coisas, portanto, orgânico, inorgânico e supraorgânico.

Avançando um pouco, explica o mestre de todos que a simetria seria uma resposta à dissimetria das relações sociais. Ou seja, as injustiças, os abusos, as explorações sociais

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naturalmente provocariam no grupo social a necessidade psíquica de elaborar leis simétricas, a fim de causar uma...

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