Principiologia dos Direitos Humanos (I)

AutorLuiz Fernando Coelho
Páginas143-160

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12. A consolidação principiológica dos direitos humanos

Paralelamente à compreensão substancial dos direitos humanos, seguida pela definição legislativa de novas prerrogativas básicas reconhecidas aos cidadãos, verificou-se uma expansão quantitativa dos seus titulares.

Fenômeno observado em todo o mundo em decorrência do progresso das comunicações, que, entre outros efeitos, levou a que as violações desses direitos repercutissem em todo o planeta, a convicção de sua universalidade foi aos poucos assumindo certo nível de concreção. Ou seja, a titularidade dos direitos humanos, que passaram a ser definidos como absolutos, seria atribuída a todos os indivíduos indistintamente, não mais em caráter meramente doutrinário, mas como fato concreto, em virtude tão somente de sua condição de pessoa.

Tal compreensão deriva da teoria do direito natural, que impregnou as declarações de direito das revoluções americana e francesa do final do século XVIII.

Apesar da tendência positivista aparentemente dominante em meios acadêmicos de prestígio, a doutrina jusnaturalista subjaz à atual concepção acerca dos direitos humanos. Pode-se mesmo afirmar que o direito natural de outrora foi substituído pelo direito humanitário de hoje, vale dizer, que os direitos humanos constituem o núcleo de novo renascimento da doutrina jusnaturalista.

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Com efeito, a Declaração da Independência dos EUA, em 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa de 1789, proclamaram a validade universal dos direitos humanos.

No processo de afirmação legislativa que hoje se observa em escala mundial, inúmeros documentos foram sendo produzidos no contexto de assembleias comunitárias de Estados, com a progressiva inclusão de novos direitos.

Situações específicas merecedoras de atenção sob a ótica dos direitos humanos levaram a que aos poucos se introduzissem, na esfera do direito internacional e nas legislações, normas que induziram à maior solidariedade para com os idosos, enfermos, menores abandonados, excluídos e pobres de modo geral. E, principalmente, para com as vítimas de ideologia de todo e qualquer credo que não respeitasse um princípio básico, a dignidade do ser humano, da pessoa humana.

Ainda que de eficácia dubitável, o reconhecimento desses direitos incorporou-se definitivamente à consciência da humanidade. Como resultado, a compreensão qualitativa dos direitos humanos e sua consolidação jurídico-positiva, malgrado as divergências quanto aos seus fundamentos, engendraram uma principiologia que veio a compor o cerne das constituições contemporâneas.

A noção individualista, universalista e jusnaturalista dos direitos humanos veio, assim, a integrar a constituição principiológica, voltada para o passado, calcada na declaração solene de grandes princípios éticos e sua ubiquação no topo da ordem jurídica, como a lei mais importante, à qual todas as outras estariam subordinadas.

Por outro lado, a ampliação dos direitos humanos para o espaço social conduziu a um conceito prospectivo de uma lei fundamental volta-da para o futuro. Almeja-se, ainda que utopicamente, que ela possa servir de instrumento para a construção de uma sociedade justa, desejo que tomou corpo na formulação do estado do bem-estar social e que veio a imbricar-se com a ideia da proteção constitucional dos direitos de cidadania e ambientais. A este novo ajuste, que acabou por fundir-se com o principiológico, deu-se o nome de “constituição dirigente”.125

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Do histórico dos documentos que implantaram juridicamente os direitos humanos, verifica-se que esse processo desenrolou-se paralelamente ao alargamento do espaço político.

Na antiguidade o sujeito era reduzido à condição de coisa ou objeto passível de posse ou apropriação por parte de outros homens, situação abolida na Europa graças à influência do cristianismo, que considerava a todos em igualdade perante Deus. Note-se que esse novo estatuto do indivíduo não tinha caráter global, pois no mundo situado fora do contexto europeu fora absorvida a ideologia que autorizava a escravização de seres humanos considerados em estado de barbárie, equivalentes a animais selvagens.

Entretanto, ainda que superada a condição escravagista da antigui-dade, permanecia o homem subordinado a alguém situado acima de sua individualidade, a quem devia obediência e veneração. O habitante europeu era servo, vassalo ou súbdito. Com as revoluções burguesas assomou ele à condição de cidadão, e todos eram considerados iguais perante a lei.

Uma fase ulterior dessa elevação de status aconteceu bem mais tarde, quando o cidadão passou a ser considerado pessoa, conceito que presidiu a elaboração do primeiro princípio do direito humanitário, o da dignidade da pessoa humana.

Tal evolução atingiu um nível de autonomia epistemológica que possibilita que a teoria dos direitos humanos hoje ostente características específicas que a diferenciam de outros ramos.

13. O direito internacional dos direitos humanos

Paralelamente à afirmação doutrinária dos direitos humanos verificou-se sua expansão geopolítica, com sua incorporação às cartas constitucionais de uma expressiva quantidade de Estados. No interior das nações que aos poucos afirmavam sua independência das metrópoles colonialistas, um número cada vez maior de cidadãos foi sendo alistado à condição de sujeito de direitos humanos. Mais tarde, quando as relações jurídico-sociais passaram a transcender as fronteiras das nações, desde

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logo as organizações internacionais abriram a perspectiva da proteção internacional dos direitos individuais, sociais e de cidadania.

Nesse processo histórico é possível detectar três fases: jusnaturalista-iluminista, constitucionalista e internacionalista.

A primeira fase não se refere propriamente à expansão geopolítica, mas é uma preparação doutrinária para o processo de constitucionalização que se seguiu. Como vimos, tal aconteceu no contexto da Ilustração, ao sabor da secularização da cultura, institucionalização do Estado moderno e consolidação dos sistemas jurídicos nacionais, tudo isso concentrando-se no constitucionalismo e na democracia. Foi igualmente o mais relevante fruto do humanismo, que, entre outros efeitos, levou ao abrandamento do direito penal, propondo, em especial, a determinação legislativa das sanções e a eliminação dos métodos de tortura. A publicação do livro de Beccaria Dos Delitos e das Penas, em 1764, favoreceu uma abordagem mais científica e menos preconceituosa das causas da criminalidade.126Ainda que lance suas raízes no pensamento filosófico e político anterior ao Iluminismo, tendo seu antecedente documental na Carta Magna, imposição dos barões ingleses ao rei João Sem-terra, em 1215, é no contexto da independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa que se consolidou o alcance semântico dos direitos humanos.

O pioneirismo cabe à Declaração de Direitos do Povo da Virgínia, de 16 de junho de 1776, seguido pela Declaração de Independência dos Estados Unidos, duas semanas após. Nesses documentos há o reconhecimento solene de que todos os homens são igualmente vocacionados, por sua própria natureza, ao aperfeiçoamento constante de si mesmos e à busca da felicidade.

A constituição dos Estados Unidos, de 1787, repete a declaração. Note-se que a frase “por sua própria natureza” enseja o entendimento de que os direitos humanos são inerentes à natureza humana, não dependendo da ordem política, que apenas os reconhece e declara.

No dia 26 de agosto de 1789 é proclamada em Paris a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, preceituando em seu artigo 1º que “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”.

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Tais documentos inauguram a fase de constitucionalização, que veio a influenciar praticamente todas as cartas magnas das nações europeias e dos novos Estados que se declararam independentes. E assim, o movimento pela proteção humanitária foi se aperfeiçoando até o presente.

A constituição francesa, promulgada em 12 de novembro de 1848, estabeleceu um governo republicano presidencialista, com um poder legislativo unicameral eleito por sufrágio universal. E reafirmou os direitos declarados em 1789.

A constituição mexicana, sancionada em 5 de fevereiro de 1917, foi a primeira a atribuir aos direitos trabalhistas a qualidade de fundamentais, juntamente com as liberdades individuais e os direitos políticos. Seguiu-se com proposta análoga a lei fundamental alemã, de 6 de fevereiro de 1919, elaborada e votada em Weimar logo após o fim da primeira guerra mundial.

No Brasil, a proteção legislativa dos direitos humanos pode ser seguida desde a Declaração da Independência, em 1822, até a Constituição da República Federativa de 1988. Nesse interregno, vigoraram a Constituição Imperial de 1824, o Código Criminal de 1830 e o Código de Processo Criminal de 1832.127É imperioso notar que a legislação aprovada após a independência do país substituiu as Ordenações Filipinas, cujas raízes medievais haviam instituído na Espanha, em Portugal e colônias uma tradição de crueldade e terror.128A terceira fase da expansão geopolítica dos direitos humanos, momento de sua internacionalização do ponto de vista dos documentos históricos que a evidenciam, verificou-se quase que paralelamente à fase constitucional.

Ainda que os movimentos constitucionalistas tenham fixado as bases para a recepção dos direitos humanos nos ordenamentos jurídicos modernos, sua compreensão como concretamente transnacionais é obra conceitual do pós-guerra. O surgimento dessa universalização levou à elaboração de um direito internacional dos direitos humanos e todo esse movimento ocorreu sob a recepção doutrinária e dogmática da dignidade da pessoa humana como valor supremo.129147

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A consciência da necessidade de uma proteção...

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