Princípios de direito do trabalho

AutorAugusto César Leite de Carvalho
Ocupação do AutorPossui mestrado em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará e doutorado em Direito das Relações Sociais
Páginas66-103

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5. 1 Conceito e funções do princípio

A espécie humana investiga, sem cessar, a primeira forma de vida, prometendo explicar a evolução dos seres animados para formas atuais e aperfeiçoadas. Quando enaltece o tronco primitivo de que teria derivado, o homem quer não apenas revelar a razão de sua existência, mas justificar-se como peça qualificada de um ecossistema, airmando-se como parte integrada a um todo. Extrai da incindi-bilidade do conjunto a imprescindibilidade do elemento.

Também a norma está, por gênese, integrada a um conjunto harmônico: o ordenamento jurídico ou sistema normativo. Essa harmonia entre as espécies normativas tem a precedência dos princípios como explicação mais lógica, pretensamente invencível. E a mesma interação, notada entre os seres vivos e a natureza, sucede entre a norma e o sistema jurídico.

Não é esta a hora ou a vez de identificarmos, na teoria dos sistemas, quais as possíveis características do sistema jurídico153. O que nos interessa agora, numa análise liminar, é enfatizar que o eventual contraste entre a regra legal e o princípio deverá implicar a ilegitimidade daquela ou a saturação deste, a necessidade de seu redimensionamento. O ideário que empresta harmonia às normas é enunciado, portanto, em postulados, que intitulamos princípios.

A essa altura, poder-se-á imaginar, com razão, que estamos retornando ao tema fontes do direito, em cuja abordagem tratamos do húmus social em que a norma teria nascimento, especialmente a norma trabalhista. Mas o nosso interlocutor haverá de fazer uma concessão e perceberá a necessi-dade de estudarmos, isoladamente, os princípios, se recordar, desde logo, que estavam eles a formar entre as fontes materiais e também em meio às fontes formais do direito laboral.

Há princípios que são inferidos do sistema e outros cuja previsão é explícita. Ilustrativamente, poderíamos sustentar que o princípio da continuidade não está consagrado em sua literalidade, mas é possível extraí-lo da ordem jurídica, como veremos em seguida, porque há, no texto das leis, uma clara tentativa de preservar o contrato de emprego pelo maior tempo possível e sem embargo de traumas ou intercorrências operacionais que lhe dificultem o curso natural. Por sua vez, os princípios da proteção, da autonomia coletiva, da boa-fé e da primazia da realidade têm previsão em norma jurídica expressa, como igualmente estudaremos.

Ao tratarmos das fontes formais de direito do trabalho, acentuamos que os princípios constitucionais devem prevalecer quando afrontados por regra legal, pois revestidos de força normativa e inscritos em norma de hierarquia superior. Essa passagem do campo programático (os princípios, sob a ordem constitucional anterior, eram assimilados como meras diretrizes que serviriam a inspirar o legislador e contribuir na interpretação da lei, no máximo a suprir-lhe a lacuna) para o campo normativo deixa perplexos alguns teóricos do Direito que preferem, por isso, assumir uma linha intermediária de argumentação.

É o caso, segundo nos parece, daqueles que enfatizam ter o princípio função normativa (seria norma generalíssima), sem ser propriamente fonte formal, porque esta, a exemplo da lei, é “uma norma desenvolvida em seu conteúdo e precisa em sua normatividade: acolhe e perila os pressupostos de sua aplicação, determina com detalhe o seu mandato, estabelece possíveis exceções”. O argumento é de Gordillo Cañas154, para quem o princípio, ao contrário da lei, “expressa a imediata e não desenvolvida

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derivação normativa dos valores jurídicos: seu pressuposto é sumamente geral e seu conteúdo norma-tivo é tão evidente em sua justificação como inconcreto em sua aplicação”.

Mas é certo que os princípios denunciam os valores que imperam na ordem jurídica e por isso são fonte material desta. O argumento, há pouco esgrimido, de o princípio não ser também fonte formal de direito convive, dificultosamente, com o aspecto de estar ele, sobretudo a partir da ordem jurídica inau-gurada com a Constituição de 1988, revestido da característica de ser norma. A um só tempo, inspira o legislador, baliza e supre a atividade legislativa, conferindo-lhe legitimidade.

Bem se vê, portanto, a importância dos princípios e assim se explica a atenção que se usa dedicar ao seu estudo. Num parêntese, é preciso frisar que se sustenta a função normativa dos princípios em outras searas do direito, não sendo esta uma orientação que anime, exclusivamente, os expoentes do direito do trabalho. Com tal ponto de vista, o constitucionalista Paulo Bonavides155 transcreve a lição sempre luminosa de Bobbio, extraída da obra Teoria dell’ Ordinamento Giuridico:

Os princípios gerais são, a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. A palavra princípios leva a engano, tanto que é velha questão entre os juristas se os princípios gerais são normas. Para mim, não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as outras [...] Para sustentar que os princípios gerais são normas, os argumentos são dois, e ambos válidos: antes de mais nada, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê por que não devam ser normas também eles [...]. Em segundo lugar, a função para qual são extraídos e empregados é a mesma cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso156.

Tal peculiaridade dos princípios (são, a um só tempo, fontes materiais e normas de direito do trabalho), potencializa ainda uma característica que, regra geral, é-lhes inerente, qual seja: a norma que provém do princípio permite que dela o princípio se extraia. Há sempre essa via de mão dupla que, a bem dizer, torna mais facilitada a tarefa de conferir a legitimidade que fará, quando presente, eicaz a norma trabalhista.

Essa dupla função dos princípios (fonte material e norma), com ênfase para os princípios especiais do direito laboral, precisa ser mais bem esclarecida e, com esse propósito, cabe lembrar que o artigo 8º da CLT refere os princípios como um dos métodos de autointegração do ordenamento jurídico, quando falta a lei trabalhista ou o contrato e essa lacuna precisa ser colmatada. A ser assim, apenas quando a norma escrita não oferecesse a solução para o conlito estaríamos aptos a recorrer às fontes formais secundárias, apelando para os princípios, principalmente do direito do trabalho. Nessa mesma linha, a lição de Plá Rodriguez, para quem os princípios assim se deinem:

[...] linhas diretrizes que informam algumas normas e inspiram direta ou indiretamente uma série de soluções, pelo que podem servir para promover e embasar a aprovação de novas normas, orientar a interpretação das existentes e resolver os casos não previstos157.

Todavia, há princípios que têm sede na Constituição, conforme veremos adiante. Em relação a esses princípios constitucionais, não se aplica o artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho, pois o conlito entre a norma maior e a regra legal inferior (exempli gratia, uma lei cujo preceito contrarie o postulado da isonomia, com matriz na Carta Magna) faz esta última, a lei, ineicaz. Nessa hipótese de antinomia, é certo que o princípio constitucional não pode ser tratado como norma secundária.

A propósito, o art. 8º da CLT teve acrescidos e alterados parágrafos que, na sua literalidade, revelam um certo descompasso entre a força normativa das regras e princípios constitucionais ou das normas que emanam dos tratados internacionais de direitos humanos e a compreensão que o legislador ordinário tem dessa relação hierárquica entre as fontes do Direito. Adicionou-se, por exemplo, o § 2º ao art. 8º da CLT para nele se estatuir: “Súmulas e outros enunciados de jurisprudência editados pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelos Tribunais Regionais do Trabalho não poderão restringir direitos legalmente previstos nem criar obrigações que não estejam previstas em lei”.

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A única exegese possível é a que compreende a última oração como a dizer sobre a vedação de “criar obrigações que não estejam previstas em norma jurídica”, pois do contrário estaríamos a retroagir a quadra histórica na qual a lei stricto sensu, ou lei ordinária, reluzia no cimo da ordem jurídica, sendo apenas programáticas as disposições constitucionais ou de normas internacionais.

Além do princípio da dignidade da pessoa humana, fonte de todos os princípios, as normas supralegais consagram, ilustrativamente, o princípio da igualdade formal e material (do qual trataremos em subitem dedicado aos princípios especiais do Direito do Trabalho), o princípio da...

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