Os princípios gerais no direito administrativo

AutorJuan Carlos Cassagne
Páginas95-143
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CAPÍTULO II
OS PRINCÍPIOS GERAIS NO
DIREITO ADMINISTRATIVO
Sumário: II.1 Projeção dos princípios gerais. II.2 Transcendência dos prin-
cípios gerais. II.2.1 Características e principalidade dos princípios gerais.
II.2.2 Suas peculiaridades no direito administrativo. II.2.3 A inserção dos
princípios do Direito Natural no ordenamento e o papel da tópica. II.3 A
concepção finnisiana sobre os princípios gerais do direito. II.4 Hierarquia
e diversidade dos princípios gerais. II.4.1 A constitucionalização dos prin-
cípios e a problemática proposta. II.4.2 Princípios fundamentais e princípios
institucionais ou setoriais. II.4.3 Os princípios gerais são fontes formais e
materiais: seu grau de preferência. II.5 O papel dos princípios no ordena-
mento. II.5.1 Distintas funções que os princípios gerais cumprem. II.5.2 Os
princípios gerais como garantias jurídicas. II.5.3 Os princípios gerais como
limites ao exercício do poder regulamentar. II.5.4 A extensão do dever de
resolver se estende a Administração. II.6 Os princípios gerais no campo da
interpretação jurídica. II.6.1 Diferentes classes de interpretação. II.6.2 A
analogia e os princípios gerais do direito. II.6.3 A submissão da Adminis-
tração à lei e ao direito. II.6.4 Os poderes discricionários da Administração
e os princípios gerais do direito.
II.1 Projeção dos princípios gerais
O sentido dos princípios gerais no direito administrativo, tanto os
que são comuns a todo o direito como aqueles que se expressam no
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JUAN CARLOS CASSAGNE
âmbito da própria disciplina, não pode prescindir do fundamento basilar
que preside as relações que se colocam entre os cidadãos e o Estado. Esse
fundamento último e principal não é outro senão a dignidade humana,
a partir da qual se chega “a alguns princípios imutáveis, superiores a todo
ordenamento positivo”.224
Em sua problemática, as distintas fontes positivas de produção do
sistema normativo cobram transcendência, assim como a justiça material,
quando procede para integrar os princípios gerais na solução do caso,
mediante um processo de heterointegração225 (no caso de carência his-
tórica de normas).
Para captar, inicialmente, o sentido do que constitui um princípio
geral, pode-se recorrer, em uma espécie de analogia, ao pensamento de
Ortega, quando defende que existe uma conexão entre ideias e crenças
que se assemelha ao que existe entre conhecimentos e certezas. Quem
crê tem certeza – acrescenta –, justamente porque ele não a forjou. Vem
de fora.226 As ideias, por outro lado, são adquiridas pelo homem em
contato consigo mesmo e com o mundo, ou seja, com a realidade.227
Nessa visão orteguiana, com exceção das distâncias e terminologias,
há muito do pensamento grego de Sócrates e de Platão, no sentido de
que as ideias são algo que o ser humano descobre dentro de si mesmo.
Como se sabe, enquanto Sócrates se baseava na pessoa (o objetivo do
filósofo era a descoberta da verdade dentro de si mesmo), Platão retoma
224 Cf. GONZÁLEZ PÉREZ, Jesús. La dignidad de la persona humana. Madrid: Civitas,
1986, p. 20; MARTÍNEZ LÓPEZ-MUÑIZ, José Luis. “Principios generales del
derecho administrativo constitucionalizados en el derecho español”. Actas del VII Foro
Íbero-americano de derecho administrativo. Valladolid e Salamanca, Junta de Castela e Leão:
Netbilo, 2008, pp. 388/389, vincula a dignidade da pessoa aos princípios do Estado
Social e Democrático de Direito.
225 SAGUÉS, Néstor Pedro. Manual de Derecho Constitucional. Buenos Aires: Astrea,
2007, p. 45.
226 ORTEGA Y GASSET, José. Obras completas. tomo V. Madrid: Alianza Editorial,
1983, p. 407.
227 ORTEGA Y GASSET, José. Obras completas. tomo V. Madrid: Alianza Editorial,
1983, p. 384.
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CAPÍTULO II – OS PRINCÍPIOS GERAIS NO DIREITO ADMINISTRATIVO
seu pensamento projetando-o sobre saber. Nessa projeção ao saber,
aperfeiçoa-se a dialética (o método da argumentação e discussão para se
chegar à verdade ou à solução justa).228
Como se sabe, o idealismo platônico consiste em uma construção
que se realiza mediante uma operação dupla: por um lado, afirma-se que
as ideias (mundo inteligível) existem independentemente das coisas;
porém as coisas (o mundo sensível) existem apenas quando participam
das ideias, daí o idealismo sustentar que a coisa não pode existir sem a
ideia (a ideia constitui o modelo exemplar das coisas).
O pensamento de Platão constitui, de certo modo, um antecedente
útil para a caracterização dos princípios gerais, enquanto afirma que o co-
nhecimento das ideias é um conhecimento a priori (independente da ex-
periência, o que não implica que se chegue a ele à margem da experiência).
Trata-se de um conhecimento universal e necessariamente válido, que terá
sempre de ser assim;229 algo semelhante à certeza ou crença, em Ortega.
Os princípios gerais guardam relação estreita com a justiça ou com
o direito natural, no qual encontram seu fundamento230, sendo conhe-
cimentos que se assemelham a crenças indiscutíveis, forjadas desde fora
da pessoa, nas quais o mundo inteiro acredita. Os princípios são universais231,
228 É a concepção clássica da dialética. As ideias modernas sobre a dialética foram
particularmente desenvolvidas por HEGEL (tese e antítese em um movimento ativista)
e SCHOPENHAUER (a arte de ter razão). Como se sabe, tais concepções da dialética
excluem a verdade e os valores.
229 Cf. BLAQUIER, Carlos Pedro. Apuntes para una introducción a la filosofía. Buenos
Aires: Lons, 2003, pp. 33/34, afirma que diante desses conhecimentos a priori estamos
“(...) perante uma verdade de direito que sempre e necessariamente é assim” (op. cit.
p. 34).
230 Ver SARMIENTO GARCÍA, Jorge. Los principios en el derecho administrativo.
Mendoza: Diké, 2000, p. 41 ss.
231 O realismo moderado, de raiz aristotélica tomista, embora postule a independência
das coisas das ideias (unificando o mundo sensível com o inteligível) aceita,
diferentemente do nominalismo, a categoria dos universais. Atualmente, alguns juristas
costumam ser nominalistas inconscientes, como os neo-positivistas; ampliar em
FERRATER MORA, José. Diccionario de Filosofía. tomo III. Barcelona: Ariel Filosofía,
1994, p. 2575 ss; tomo IV. Barcelona: Ariel Filosofía, 1994, p. 3603 ss.

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