Princípios e interpretação na bioética e no biodireito

AutorMaria de Fátima Freire de Sá/Bruno Torquato de Oliveira Naves
Páginas17-36
CAPÍTULO 2
PRINCÍPIOS E INTERPRETAÇÃO
NA BIOÉTICA E NO BIODIREITO
A tarefa primordial do Direito nas sociedades modernas foi e ainda é a de ser uma das formas de inte-
gração social (HABERMAS 1997b: 1: 44 et seq.). Assumindo e transcendendo o papel que a religião
ou as tradições imemoriais detinham no passado das sociedades pré-modernas, o Direito deve a um
só tempo: a) garantir a certeza nas relações, ou, numa linguagem mais atual, manter as expectativas
generalizadas de comportamento, erigindo padrões de conduta; e b) pretender ser o fundamento de
si mesmo, já que não possui mais um fundamento absoluto, a religião ou a tradição, para legitimá-lo.1
1. INTRODUÇÃO
Os avanços biotecnológicos têm colocado a humanidade diante de situações até
pouco tempo inimagináveis. Basta ligar a televisão ou ler um jornal para depararmos
com questões atinentes a inseminação artif‌icial, fecundação in vitro, barrigas de aluguel,
engenharia genética e à insistente luta contra malformações congênitas, transplantes
de órgãos, clonagens, controle da dor e prolongamento da vida.
As reações das pessoas são as mais diversas: de um lado alguns se posicionam
encarando os avanços científ‌icos como “obras do demônio”; de outro, em posição dia-
metralmente oposta, verif‌ica-se seu endeusamento. Assim, urge questionar: até onde
avançar sem agredir? Como controlar esta crescente “biologização” do ser humano?
Tudo o que se pode fazer tecnicamente se deve fazer? Criaremos o bebê à la carte? A
solução para limitar referidos avanços baseia-se em regras específ‌icas?
Ao analisar os avanços da biotecnologia e as condutas do homem tecnológico,
Volnei Garrafa assim se expressa:
Paradoxalmente, ao mesmo tempo que gera novos seres humanos através do domínio das complexas
técnicas de fecundação assistida, agride diariamente o meio ambiente do qual depende a manutenção
futura da espécie. O surgimento de novas doenças infectocontagiosas e de diversos tipos de câncer,
assim como a destruição da camada de ozônio, a devastação de orestas e a persistência de velhos
problemas relacionados com a saúde dos trabalhadores (como a silicose) são ‘invenções’ deste mesmo
‘homem tecnológico’, que oscila suas ações entre a criação de novos benefícios extraordinários e a
insólita destruição de si mesmo e da natureza.2
1. CATTONI, Marcelo. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 107.
2. GARRAFA, Volnei. Iniciação à bioética: bioética e ciência – até onde avançar sem agredir. Brasília: Conselho
Federal de Medicina, 1998, p. 99-110.
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BIOÉTICA E BIODIREITO • MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ E BRUNO TORQUATO DE OLIVEIRA NAVES
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O conf‌lituoso avanço da área biomédica traduz a preocupação não só com situações
emergentes, ou seja, aquelas proporcionadas por avanços como os alcançados no campo
da engenharia genética e consequentes desdobramentos, como, por exemplo, o caso
de clonagens humanas, mas diz respeito também ao que podemos chamar de situações
persistentes, diretamente relacionadas com a falta de acesso de inúmeras pessoas à uti-
lização igualitária de consumo sanitário. Assim, se de um lado a biotecnologia provoca
benefícios inquestionáveis, de outro, pode muito bem proporcionar o elastecimento de
problemas atinentes à exclusão social.
Quanto a este último aspecto, precisamos deixar claro que o usufruto democrático
dos benefícios decorrentes do desenvolvimento biotecnológico, por enquanto, é mera
utopia. Eis a dura realidade: quem tem mais, vive mais; quem tem pouco, vive menos.
Conforme af‌irma Garrafa:
A vida, em muitas instâncias, passa a ser um negócio: rentável para alguns, principalmente para os
proprietários de companhias internacionais seguradoras de saúde; e inalcançável para uma multidão de
excluídos sociais que não têm condições de acesso às novas descobertas e a seus benefícios decorrentes.3
Neste segundo capítulo dedicaremos espaço aos elementos que compõem os siste-
mas normativos da Bioética e do Biodireito. Para tanto, mister a compreensão do método
jurídico de aplicação das normas e interpretação dos problemas propostos.
Dessa forma, o capítulo será apresentado em dois enfoques “estático” e “dinâmi-
co”, isto é, primeiro serão expostos os elementos do Biodireito (normas jurídicas) e da
Bioética (valores normativos), e a seguir a atuação desses elementos, sua incidência e
interpretação.
2. A TENSÃO ENTRE AXIOLOGIA E NORMATIVIDADE NO DIREITO, NO
BIODIREITO E NA BIOÉTICA
Como vimos no capítulo 1, normas jurídicas e normas éticas são distintas, embora
guardem semelhanças. As normas jurídicas podem ser didaticamente divididas em regras
e princípios. Já as normas éticas são valores, em regra valores dominantes da sociedade.
Dessa forma, o julgamento de um médico perante o órgão do Conselho de Medicina
é julgamento ético ou jurídico?
Vejamos, os conselhos de Medicina são autarquias, isto é, pessoas jurídicas de direito
público, criadas por lei, que desempenham serviços públicos. São titulares de interesses
públicos. Trata-se da própria administração pública exercida de forma descentralizada.
3. “Hoje, a distância entre os excluídos e os incluídos na sociedade de consumo mundial – tanto quantitativa,
quanto qualitativamente – é paradoxalmente maior que vinte anos atrás. Enquanto os japoneses, por exemplo,
apresentam uma expectativa média de vida de quase oitenta anos, em alguns países africanos, como Serra Leoa
ou Burkina Fasso, a média mal alcança os quarenta. Um brasileiro pobre nascido na periferia de Recife, cidade
situada na árida e sofrida região Nordeste do país, vive aproximadamente 15 anos menos que um pobre nascido
na mesma situação na periferia de Curitiba ou Porto Alegre, no sul benef‌iciado pelas chuvas e pela natureza.”
COSTA, Sérgio Ibiapina F.; GARRAFA, Volnei. A bioética no século XXI. Brasília: UnB, 2000, p. 14-15.
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