Princípios que pautam o consentimento do paciente
Autor | Flaviana Rampazzo Soares |
Páginas | 199-214 |
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PRINCÍPIOS QUE PAUTAM O
CONSENTIMENTO DO PACIENTE
Nos itens anteriores, foi referido que o consentimento é um ato integrante da cate-
goria genérica dos atos jurídicos lato sensu, o qual, para ser constituído validamente, deve
ser emitido por pessoa capaz e ter conteúdo lícito. Abordou-se, igualmente, a importância
da fase informativa prévia à sua emissão, cuja complexidade é variável de acordo com
as circunstâncias concretas. Foi citado que o defeito informativo, ou a omissão, sem
dolo, que venha a lesar a autodeterminação do paciente, predispõe ao dever de indenizar
pelos danos que lhe forem causados e, caso esse defeito ou essa omissão sejam dolosos,
além da possível responsabilização, abrir-se-á espaço à anulabilidade do consentimento.
Dessa forma, e mesmo pela interpretação do disposto no art. 185 do CC, é possível
afirmar que as nulidades e as anulabilidades, em geral, são aplicáveis ao consentimento
do paciente, assim como a disciplina dos defeitos dos negócios jurídicos. Elas funcionam
como meio de contenção de condutas ou ocorrências juridicamente indesejáveis que
enviesam um ato lato sensu. Quando puder ser aproveitado um consentimento, há ferra-
mentas multifuncionais – princípios e cláusulas gerais – que podem servir para auxiliar
nessa tarefa de ajuste desses atos de vontade, para assegurar o cumprimento das suas
funções, sem invalidação, de modo a fazer com que esse consentimento encontre um
traçado juridicamente conforme, pois elas servem como possíveis aberturas do direito
na missão de calibragem dos atos em sentido lato, sem que seja necessário derrubá-los,
bem como para definir condutas admissíveis e exigíveis do médico, além de atuar na
interpretação jurídica.
Nesse domínio, explanam-se os mais proeminentes princípios que podem ser utili-
zados para nortear a atividade de compreensão do conteúdo e extensão do consentimento
do paciente, bem como algumas figuras jurídicas que lhe são aplicáveis, acrescidos de
aspectos que devem ser considerados no exercício do direito de autodeterminação e as
consequências do seu não atendimento.
Eles serão elencados devido à sua importância, assim considerados aqueles mais
difundidos doutrinária e jurisprudencialmente, cuja aplicação com maior ênfase se dá
em face da relevância do interesse (saúde) envolvido, pois o paradigma da essencialidade
pode servir tanto para distinguir diferentes atos jurídicos lato sensu quanto para definir
eventuais preponderâncias de um ou outro princípio, na análise de casos concretos1.
1. A “essencialidade do objeto” é expressão cunhada por Negreiros, que afirma, referindo-se ao campo contratual:
“O aqui denominado paradigma da essencialidade constitui, portanto, um instrumento para se distinguirem os
contratos à luz das diferentes funções que desempenham em relação às necessidades existenciais do contratante.
CONSENTIMENTO DO PACIENTE NO DIREITO MÉDICO • FLAVIANA RAMPAZZO SOARES
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O consentimento deve atender a uma função de tutelar os legítimos interesses do
paciente quanto ao modo de conduzir o atendimento no que respeita à sua saúde, na
melhor e admissível medida dos seus anseios e considerando a sua condição clínica
específica. Por isso, é fundamental que o paciente, auxiliado pelo médico, desvele qual
é a sua necessidade, a utilidade do tratamento, da assistência ou do diagnóstico e a fina-
lidade almejada, para que, a partir disso, sejam definidos os passos de alcance possível.
Reitere-se que há um dever de cuidado ínsito na atividade médica, cuja observân-
cia se impõe ao profissional, no atendimento a ser realizado2. Tanto sob o enfoque do
cuidado quanto sob o da essencialidade do vínculo estabelecido, do teor e dos efeitos
dos atos jurídicos realizados, vislumbra-se que o olhar sobre a retidão da conduta das
partes, a fim de que se alcance a finalidade referida, deve ser mais apurado do que aquele
posto no julgamento de correção ou incorreção de conduta das partes em atos stricto
sensu ou negócios que não sejam existenciais.
6.1 INIQUIDADE E ABUSIVIDADE
A vedação da iniquidade (o que é contrário à Justiça) e da abusividade (o que excede
os limites do juridicamente aceitável) assume relevância na análise ora empreendida,
pois ambas são aplicáveis ao consentimento do paciente.
Sob a ótica da relação de base estabelecida entre o paciente e o médico, além da
referência aos princípios e regras deontológicas cabíveis, incidem as regras previstas
no CC e no CDC. Essa cobertura normativa gera consequências em todo o processo
formativo vinculado ao consentimento, sua interpretação e efetivação prática, iniciando
pela compreensão de que o paciente é pessoa humana e, embora haja redundância na
afirmação, deve-se admitir que, em geral, quem procura atendimento médico assim pro-
cede porque está com algum problema, preocupação ou mesmo em situação de atenção
à sua saúde, e que busca um especialista (o médico) porque este detém o conhecimento
e a técnica específica que o usuário do serviço não tem e, sob qualquer aspecto, está
mais suscetível a ingerências prejudiciais, porque em geral a busca pelo atendimento
traz em si a esperança de melhora da saúde, interesse valioso e não repristinável, porque
vinculado à vida, que é um direito fundamental.
É por isso que algumas proibições são impostas ao médico, que não pode, por
exemplo, “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância” do paciente, em razão da “sua idade,
saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços”
(art. 39, inc. IV, do CDC).
Isso pode ocorrer tanto em consentimentos emitidos mediante mera assinatura
em formulário-padrão quanto nas hipóteses de termos redigidos individualmente,
Os contratos que tenham por função satisfazer uma necessidade existencial do contratante devem sujeitar-se a um
regime de caráter tutelar – ampliando-se, correlatamente, o campo de aplicação dos novos princípios. Ao revés,
os contratos que tenham por objeto bens supérfluos, destinados a satisfazer preferências que não configuram
necessidades básicas da pessoa, tais contratos são compatíveis com uma disciplina mais liberal, o que vale dizer que
devem sofrer maior influência dos princípios clássicos”. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato..., cit., p. 31-32.
2. MIRAGEM, Bruno Nubens Barbosa. Direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 569.
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