A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade

AutorProf. Humberto Ávila.
CargoAdvogado em Porto Alegre. Professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RS) e da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul (AJURIS)
Páginas1-36

Advogado em Porto Alegre. Professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RS) e da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul (AJURIS). Doutor em Direito (Doctor juris) e Certificado de Estudos em Metodologia da Ciência do Direito pela Universidade de Munique, Alemanha. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito e Especialista em Finanças pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Artigo originalmente publicado na Revista de Direito Administrativo, (215):151-179, Rio de Janeiro, Renovar, jan./mar. 1999.

Page 1

Introdução

É crescente a aplicação, no direito brasileiro, do chamado "princípio da proporcionalidade". O Supremo Tribunal Federal decidiu que não se pode, por pretensão de terceiro, constranger o pai presumido ao fornecimento de sangue para a pesquisa do DNA, já que "à luz do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, se impõe evitar a afronta à dignidade pessoal que, nas circunstâncias, a sua participação na perícia substantivaria".1 Nesse caso, a Page 2 proporcionalidade destina-se a estabelecer limites concreto-individuais à violação de um direito fundamental - a dignidade humana -, cujo núcleo é inviolável.

O mesmo Tribunal, ao julgar se o fato de a isenção do imposto de competência da União ser parcial implicaria o afastamento das regras pertinentes constantes da Constituição anterior, decidiu que "conflita com o Texto Maior, com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade nele consagrados, entender-se pelo afastamento da extensão do benefício ao tributo estadual pelo fato de a isenção não ser total".2 Pelo que se depreende da leitura da ementa, a proporcionalidade destina-se a determinar a exigência de racionalidade na decisão judicial.

Sobre a aplicação de circunstância legal agravante como critério de fixação da pena-base, decidiu o Supremo Tribunal Federal que "ofende o princípio da proporcionalidade entre a agravante e a pena aplicada, bem assim o critério trifásico previsto no art. 68 do Código Penal, a sentença que na primeira etapa da individualização da pena fixa o seu ‘quantum’ no limite máximo previsto para o tipo penal".3 Nesse julgado, a proporcionalidade serve para estabelecer uma relação entre a agravante e a pena aplicada, bem como para justificar a aplicação conforme às prescrições legais.

O mesmo Supremo Tribunal Federal, agora em nome da excessividade, declarou inconstitucional a lei que previa a obrigatoriedade de pesagem de botijão de gás à vista do consumidor, não só por impor um ônus excessivo às companhias, que teriam de dispor de uma balança para cada veículo, mas também por que o interesse público e a proteção dos consumidores poderiam ser atingidos de outra forma, menos restritiva.4 Nessa decisão, a inconstitucionalidade resultou da excessidade da lei relativamente ao seu fim.

Em outra decisão, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a criação de taxa judiciária, de percentual fixo, por considerar que, em alguns casos, seria tão alta que impossibilitaria o exercício de um direito fundamental - obtenção de prestação jurisdicional -, além de não ser razoavelmente Page 3 equivalente ao custo real do serviço.5 Nesse caso, o fundamento da decisão está na desproporção entre o custo do serviço e a taxa cobrada, denominado, no Direito Tributário, de princípio da equivalência.

A análise dessas decisões leva-nos a duas prévias conclusões. Em primeiro lugar, demonstra que a exigência de proporcionalidade vem sendo aceita como um dever jurídico-positivo, o que, por si só, revela a importância de sua explicação e descrição. Em segundo lugar, revela que a utilização do princípio da proporcionalidade nem sempre possui o mesmo significado, não apenas porque ele é tratado como sinônimo da exigência de razoabilidade, com a qual - como será demonstrado - não se identifica, mas porque ele ora significa a exigência de racionalidade na decisão judicial, ora a limitação à violação de um direito fundamental, ora a limitação da pena à circunstância agravante ou necessidade de observância das prescrições legais, ora proibição de excesso da lei relativamente ao seu fim e ora é sinônimo de equivalência entre custo do serviço e a relativa taxa. A sua aplicação, como será demonstrado, é muitas vezes correta. Mas mesmo nesses casos, a fundamentação do dito princípio da proporcionalidade não apresenta razões intersubjetivamente controláveis, na medida em que não estabelece critérios de delimitação da relação meio-fim - absolutamente essencial à aplicação da proporcionalidade -, bem como deixa obscuro o seu fundamento de validade. Enfim, a fundamentação das decisões, em vez de ser clara e congruente, termina sendo ambígua.

O tema relativo à proporcionalidade é recente na doutrina brasileira.6Resulta, sobretudo, da influência positiva do direito alemão, onde foi primeiramente estudado e aplicado.7 Várias questões, entretanto, merecem maior aprofundamento. Boa parte da doutrina não consegue explicar Page 4 adequadamente o dever de proporcionalidade, sobretudo, quando a questão a ser elucidada é o seu fundamento de validade. O fundamento de validade varia do Estado de Direito, dos direitos fundamentais ou da unidade da Constituição até a conjugação de todos esses fundamentos. Os temas mais complexos ligados à definição de princípios, dos quais a proporcionalidade seria uma espécie, ou à delimitação objetiva da relação meio-fim, sem cujo delineamento a proporcionalidade não pode ser racionalmente concebível, não recebem a devida importância.

A intepretação e aplicação equívoca do dever de proporcionalidade no direito brasileiro tem causas detectáveis. O chamado princípio da proporcionalidade não consiste num princípio, mas num postulado normativo aplicativo. A partir dessa constatação ficará claro porque a tentativa de explicação do seu fundamento jurídico-positivo de validade tem sido tão incongruente: é que ele não pode ser deduzido ou induzido de um ou mais textos normativos, antes resulta, por implicação lógica, da estrutura das próprias normas jurídicas estabelecidas pela Constituição brasileira e da própria atributividade do Direito, que estabelece proporções entre bens jurídicos exteriores e divisíveis. Vale dizer: a tentativa de extraí-lo do texto constitucional será frustrada. Para demonstrá-lo, é preciso explicar o conceito mesmo de princípios, que remonta, sobretudo, às obras de ESSER, LARENZ, CANARIS, DWORKIN e ALEXY, mas cujos fundamentos devem, ainda hoje, ser repensados em profundidade, dada a recepção - muitas vezes acrítica - que essas obras têm obtido na doutrina brasileira.

Como será demonstrado, o dever de proporcionalidade não precisa apenas ser distinguido frente aos princípios e às regras; ele necessita ser diferenciado também relativamente a outras categorias, com as quais não se identifica: razoabilidade, equivalência e a proibição material de excesso. É dizer: é preciso atribuir-lhe um significado normativo autônomo, pela simples constatação de que há conceitos diversos a serem explicados, os quais, fazendo referência a fenômenos normativos diferentes, devem ser, em obséquio à clareza, qualificados também distintamente. Nesse sentido, o dever de proporcionalidade pode ser definido de tal sorte que a sua interpretação mantenha referência ao ordenamento jurídico brasileiro e que a sua aplicação apresente critérios racionais e intersubjetivamente controláveis. Isso justifica a nossa pretensão de estipular-lhe uma definição.

Page 5

I Os princípios e o dever de proporcionalidade
A Definição de princípio na doutrina

A definição de princípios jurídicos e sua distinção relativamente às regras depende do critério em função do qual a distinção é estabelecida. Ao contrário dos objetos materiais (coisas), cujo consenso em torno de sua denominação é mais fácil pela referência que fazem a objetos sensorialmente perceptíveis, as categorias jurídicas, entre as quais se inserem os princípios, são instrumentos analíticos abstratos (linguisticamente formulados). Por isso mesmo é mais difícil haver uma só definição de princípio, já que a sua distinção relativamente às regras depende muito intensamente do critério distintivo empregado (se quanto à formulação, ao conteúdo, à estrutura lógica, à posição no ordenamento jurídico, à função na interpretação e aplicação do Direito, etc.), do fundamento teórico utilizado (se positivista, jusnaturalista, normativista, realista, etc.) e da finalidade para a qual é feita (se descritiva, aplicativa, etc.). Daí a afirmação de GUASTINI, segundo a qual não se deveria sequer buscar uma definição unitária dos princípios jurídicos, mas apenas aceitar, primeiro, que alguns autores o utilizam com um significado e outros com outro e, segundo, que o termo princípio pode referir-se a vários fenômenos, e não somente a um só.8 Isso explica porque há tanta divergência quanto ao significado dos princípios. Chega-se mesmo a afirmar que haveria quase tantas definições de princípios quantos são os autores que sobre eles escrevem. Neste estudo não serão feitas, de modo algum, críticas sobre a adequação da definição formulada por este ou aquele autor. Muitos autores utilizam o termo "princípio" de forma diversa da aqui proposta, sem que a consistência de sua argumentação seja perdida em proveito da ambigüidade. É dizer: o problema não está em qualificar esta ou...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT