O prisma constitucional das sanções

AutorCalil Simão
Ocupação do AutorDoutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (PT). Mestre em Direito
Páginas617-664

Page 617

49 A ordem social e jurídica: a sanção

A formação da sociedade decorre do agrupamento de pessoas em busca de um bem comum. Para atingir essa finalidade são indispensáveis determinados comportamentos, seja uma ação ou omissão, sem as quais não é possível manter a harmonia e o interesse coletivo.

Esse conjunto de manifestações ordenadas, exteriorizado pelo que chamamos de ordem social, pressupõe a sua observância por todos aqueles que compõem a comunidade. Embora essas manifestações sejam fruto de uma vontade social, sempre há desobediência por parte de alguns de seus membros.

Quando o fato de se buscar o bem comum não é mais suficiente para garantir a sua higidez, torna-se necessário criar um elemento de coerção. Surge a ordem jurídica, disciplinadora das relações sociais com condutas impositivas e coercitivas798. Ou seja, coercitiva no sentido de contrária à vontade do indivíduo.

O Direito, dessa forma, “atribui a todo o membro da comunidade seus deveres e, desse modo, sua posição na comunidade, por meio de uma técnica específica, prevendo um ato de coerção, uma sanção dirigida contra o membro da comunidade que não cumpre seu dever”799.

A sanção é uma medida coercitiva que consiste em privar o indivíduo de suas posses, como a vida, a liberdade ou seu patrimônio800. Ela se manifesta como preventiva, quando a sua finalidade é evitar o descumprimento do ordenamento jurídico (assegurar determinado comportamento); ou repressiva/sucessiva, quando atua após a realização desse comportamento, com a finalidade de reprimir.

Page 618

É certo que toda ordem social é sancionadora em algum aspecto, seja porque assim se estabeleça (ordem coercitiva), seja porque se constitui de uma obediência automática e voluntária decorrente de uma coação psicológica.

Tanto a conduta contrária à ordem social, a qual se denomina de antijurídica, quanto à sanção, são estabelecidas pela ordem jurídica. Essa, portanto, estabelece a conduta reprovável e a sanção aplicável no caso de sua verificação.

Devido ao exposto, podemos afirmar que o termo sanção, de origem latina801, pode apresentar-se de formas juridicamente variadas, tal como “repressivas, de nulidade ou de anulação, de indenização, de segurança ou garantia, acauteladoras, diretas, ou indiretas”802.

O vocábulo sanção, portanto, será empregado neste trabalho em sentido amplo, tanto para indicar as obrigações legais de natureza indenizatória, acauteladora, quanto punitiva.

Dessas considerações se extrai, também, que o papel do Estado, nesse aspecto, são dois. O primeiro, de regular as relações sociais para que o convívio seja possível: relações entre os membros da sociedade, bem como entre estes e o próprio Estado. O segundo é fixar os deveres de cada um e as respectivas responsabilidades pelo seu descumprimento, denominado de ilícito jurídico. Esse conjunto de normas constitui o chamado direito objetivo.

Ao fixar o direito objetivo, cria o Estado uma faculdade para o membro da sociedade: as condutas não vedadas encontram-se, consequentemente, permitidas, surgindo um direito público subjetivo ao seu exercício.

Dessa maneira, podemos afirmar que o direito objetivo, ao regular essas atividades, estabelecendo a relação entre aquela que é lícita e ilícita, exerce um papel importante de limitador da atividade sancionadora do Estado. Absolutamente perfeita é a afirmação de que a Lei de Improbidade Administrativa não só disciplina e tipifica os atos de improbidade, mas também concede direitos aos acusados de improbidade, na medida em que limita o poder punitivo do Estado803.

Em nosso sistema constitucional, só o Estado possui competência para estabelecer as infrações e as sanções correspondentes (criação do direito objetivo), por meio de sua função legislativa (CF, art. 5º, II).

Esse direito de punir é uma manifestação de soberania, encontrando seu limite nas garantias constitucionais. No Brasil, uma das mais importantes limitações está prevista no inc. XXXIX do art. 5º: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;”.

Page 619

Essas limitações ao poder de punir do Estado, mais conhecido como jus puniendi, preserva princípios importantíssimos, como o da liberdade, pelos quais se assegura o direito de apenas ser punido de acordo com a lei. O inciso transcrito estabelece quatro regras fundamentais: 1) reserva legal; 2) taxatividade; 3) anterioridade; 4) irretroatividade. A reserva legal determina que somente a lei formal pode estabelecer as condutas antijurídicas e suas respectivas sanções. A taxatividade significa que só é possível aplicar as sanções expressamente previstas, bem como com relação às condutas exatamente descritas, pois o tipo legal não pode ser impreciso. A anterioridade assegura que tanto as condutas antijurídicas como as sanções aplicáveis devem estar previstas antes do fato que objetivam punir. Por fim, o da irretroatividade veda a aplicação das normas incriminadoras a fatos anteriores a sua vigência, salvo se forem mais benéficas (CF, art. 5º, XL).

Não podemos considerar as regras acima como exclusivas do Direito Penal, porque, hodiernamente, não é apenas ele que cuida de normas sancionadoras. Ao Direito Penal se reserva, apenas, o sancionamento das condutas mais graves e que não atinjam, exclusivamente, interesses individuais, mas o interesse coletivo em último grau; em razão disso, deve possuir uma reprimenda mais agressiva e suficiente para a proteção dos bens jurídicos em jogo.

Ademais, seja qual for a natureza da responsabilidade, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (CF, art. 5º, II), tampouco processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (CF, art. 5º, LIII), ou mesmo privado da liberdade e de seus bens, sem observância do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), sejam eles litigantes em processo judicial, administrativo ou acusados em geral (CF, art. 5º, LV).

Todas essas garantias devem ser asseguradas e outra não poderia ser a orientação em um Estado Democrático de Direito. Sendo assim, a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, encontra-se expressamente vinculada aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (CF, art. 37).

O Direito Administrativo passou, ao longo dos tempos, a absorver uma função sancionadora. Não uma função sancionadora interna, mas uma função protetora da ordem social. A Lei de Improbidade Administrativa é prova disso, uma vez que é uma materialização do Direito Administrativo Sancionador804.

Essa lei não tem natureza civil, porque o bem jurídico tutelado não é privado, mas público. A Lei nº 8.429/92 não é e nunca poderia ser uma legislação civil, pelo simples fato de que essas regulamentações partem de um pressuposto inafastável: regular o interesse individual. O interesse protegido é o privado805.

Page 620

A LIA disciplina interesses da coletividade – não sanciona os atos entre particulares, mas aqueles que atentam contra o interesse público; sintetizando, é o interesse público que é tutelado por essa norma jurídica, e não o privado.

50 As sanções decorrentes da conduta ímproba – individualização da pena: a dosimetria

A Constituição Federal, no § 4º do art. 37, definiu as regras pertinentes ao sancionamento da conduta ímproba. Diz o constituinte que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

Quando a norma constitucional delimita todos os elementos a respeito de uma matéria, não deixando espaço para qualquer complementação, dizemos que ocorre o que se convencionou chamar de reserva constitucional.

No caso das sanções aplicáveis à conduta ímproba foi exatamente isso que aconteceu. Informou o dispositivo todas as sanções admissíveis proibindo, consequentemente, o legislador ordinário de avançar na matéria. O termo importarão é dirigido ao legislador e impõe um dever de obediência aos limites traçados pelo constituinte com relação às sanções aplicáveis.

O termo importarão, portanto, significa ter como consequência, causa ou implicação. A competência legislativa ordinária ficou, dessa forma, delimitada pelo constituinte.

O dispositivo, nesse tocante, produz efeitos imediatos. A aplicação da pena, entretanto, é de efeito diferido porque o constituinte delegou, e, apenas no concernente a este ponto específico, ao legislador infraconstitucional, a forma e graduação das sanções previstas.

Forma significa a maneira com que as penas serão aplicadas, como, por exemplo, os requisitos para a sua incidência. A expressão na forma da lei não significa que é possível o legislador infraconstitucional criar novas sanções, isto é, inovar nesse aspecto. O termo forma foi empregado para indicar a maneira com que as penas serão aplicadas. Que penas? Aquelas instituídas de acordo com o previsto pelo constituinte.

Devemos, por questão de coerência, concluir que a expressão graduação foi empregada para reforçar a aplicação do princípio da individualização das penas, previsto no inc. XLVI do...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT