Privacidade, vigilância e inteligência no Brasil: o marco legal e suas lacunas

AutorPedro Augusto P. Francisco - Jamila Venturini
Páginas283-301
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PRIVACIDADE, VIGILÂNCIA E INTELIGÊNCIA NO
BRASIL: O MARCO LEGAL E SUAS LACUNAS1
PEDRO AUGUSTO P. FRANCISCO
JAMILA VENTURINI
INTRODUÇÃO
A Internet comercial no Brasil teve seu início em 1994. Desde então, ela
foi elemento central de uma série de mudanças tecnológicas cuja base pode
ser resumida no aumento da capacidade de digitalização e processamento
de dados, com cada vez mais velocidade. Essas mudanças trouxeram para
a ordem do dia discussões sobre o direito à privacidade, na sua dimensão
individual e subjetiva. Uma liberdade negativa, na medida em que enseja
uma obrigação de não-fazer. Ninguém pode ter sua privacidade violada
sem um motivo legítimo e legal.
Com o intuito de controlar as atividades de vigilância por parte do
Estado – cada vez mais baseadas em avançadas tecnologias digitais de
coleta e processamento de dados – houve o crescimento de uma demanda
por transparência e por mecanismos que permitam à sociedade saber que
tipo de informação esse Estado tem sobre a população.
Por sua vez, as motivações do Estado para obter informações sobre indiví-
duos são diversas e não são novas. Desde o século XVIII, quando a própria
ideia de “população” entra no vocabulário e na racionalização do Estado,
arte de governar passou a ser dependente da capacidade do agente gover-
nante de obter dados sobre aquilo que será governado (FOUCAULT, 2004).
Tampouco são novos os abusos decorrentes das atividades de vigilância.
O que as tecnologias digitais trazem são novas modalidades de obtenção
1 Parte desse texto se baseia no relatório da pesquisa Privacy and surveillance in
the digital age: a comparative study of the Brazilian and German legal frameworks,
elaborado por Anja Dahlmann, Jamila Venturini, Marcel Dickow e Marilia Ferreira
Maciel. O relatório foi publicado em 2015 e contou com a revisão técnica de Bruno
Bioni e Geraldo Prado.
284 HORIZONTE PRESENTE
de informações e escala, de um modo nunca antes visto. Essa escala inclui
um importante aspecto: o surgimento de uma indústria privada de vigi-
lância baseada não só em agentes tradicionais do setor – tais como a Logos
Technologies,2 a Hacking Team3 e Harris Corp.,4 para citar apenas alguns
que atuaram junto ao governo brasileiro em diferentes circunstâncias5 –,
mas também em atores que não eram tradicionalmente percebidos como
instrumentos de vigilância e que passaram a ser agentes centrais nesse ecos-
sistema, como Microsoft, Google, Facebook e Yahoo,6 de modo que já não é
possível se discutir vigilância e privacidade sem levá-los em consideração.
Se talvez o papel do setor privado e, particularmente, das empresas de
Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) não estivesse tradicio-
nalmente no foco das discussões sobre vigilância e privacidade, é preciso
evidenciar que hoje essa é uma preocupação transversal para setores que
vão do governo à sociedade civil. As denúncias sobre as atividades de
vigilância em massa realizadas pelos Estados Unidos e parceiros organiza-
dos no grupo conhecido como “Five Eyes” certamente tiveram um papel
central em chamar a atenção para essa questão.7 O escândalo parece ter
materializado preocupações pré-existentes com o aumento da capacidade
de vigilância do Estado por meio das tecnologias digitais e, com isso, gera-
do uma grande discussão sobre a ameaça que a coleta e o processamento
massivo de dados podem representar aos direitos fundamentais.
2 LOGO TECHNOLOGIES. About us. Disponível em:
about-us/>. Acesso em: 29 ago. 2017.
3 HACKING TEAM. About us. Disponível em:
html>. Acesso em: 29 ago. 2017.
4 HARRIS. About Harris. Disponível em: . Acesso
em: 29 ago. 2017.
5 THE WEEK. Disponível em: -
zil-watching>; -
miam201d-a-industria-da-vigilancia>. Acesso em: 7 jul. 2016, e VICENTE, João Paulo.
Como as Olimpíadas ajudaram o Brasil a aumentar seu aparato de vigilância social.
MOTHERBOARD, 7 jul. 2016. -
sil-aprimorou-seu-aparato-de-vigilancia-social-para-as-olimpiadas>. Acesso em: 29 ago. 2017.
6 THE GUARDIAN. Microsoft, Facebook, Google and Yahoo release US surveillance
requests. Disponível em: .theguardian.com/world/2014/feb/03/micro-
soft-facebook-google-yahoo-fisa-surveillance-requests>. Acesso em: 29 ago. 2017.
7 Para mais informações sobre o “Five Eyes” ver: PRIVACY INTERNATIONAL. Privacy
International Launches International Campaign For Greater Transparency Around
Secretive Intelligence Sharing Activities Between Governments. 23 out. 2017. Disponível
em: . Acesso em: 29 ago. 2017.

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