Privatizacao da saude no Brasil: da ditadura do grande capital aos governos do PT/Privatization of healthcare in Brazil: from big capital dictatorship to the PT administrations.

AutorCislaghi, Juliana Fiuza

Introducao

Grandes multinacionais que atuam no segmento de saude tem investido forte no Brasil ou estao pensando em investir. O que as atrai? Mercado. Temos o maior sistema nacional publico universal e gratuito do mundo. (Entrevista do Ministro da Saude Alexandre Padilha ao Jornal Valor Economico em outubro de 2012) A afirmacao do ex-ministro pode parecer paradoxal, sob uma ingenua primeira vista. Esse artigo (1), fruto da tese de doutorado Elementos para a critica da economia politica da saude no Brasil: parcerias publico-privadas e valorizacao do capital, defendida no Programa de Pos-Graduacao em Servico Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) em abril de 2015, vai explicar, exatamente, por que nao e.

O setor da saude no Brasil sempre foi, ainda antes da Constituicao de 1988, majoritariamente privado, com subsidios do fundo publico. Com a Constituicao e a construcao do Sistema Unico de Saude (SUS), vivemos uma ampliacao do sistema publico, porem a conservacao do setor privado como complementar ao publico manteve as contradicoes na relacao entre esses dois setores, bem como a disputa aberta, e mais acirrada, pelo fundo publico.

A construcao do SUS se da no momento da "contrarrevolucao monetarista" (NUNES, 2007), em curso desde a decada de 1970 em varios paises, que alcanca o Brasil nos anos 1990 e rapidamente se torna hegemonica em todo o mundo. Resposta a crise do capital na busca pela retomada das taxas de lucro, o periodo que se convencionou chamar de neoliberal traz profundas implicacoes para o Estado e as politicas sociais. Ambos sao colocados, cada vez mais, a servico do capital, ainda que, residualmente, mantenham seu papel de garantir a reproducao da classe trabalhadora e a coesao social. Essa relacao historica entre publico e privado no setor de saude brasileiro, intercedida pelo papel do Estado e do fundo publico na sua regulacao e financiamento, ira, entao, ganhar novos formatos e novas determinacoes.

Na primeira parte desse artigo, discutimos a trajetoria historica de privatizacao no Brasil e, na segunda parte, o capital privado na saude ate os governos do PT. Nosso objetivo foi construir uma critica da economia politica da saude, partindo da hipotese de que os mecanismos de apropriacao privada de fundo publico vem dando suporte para a subsuncao real ao capital no setor da saude na atualidade.

Marcos historicos da privatizacao da saude no Brasil

Foi na ditadura militar, ditadura do grande capital (2), que o Brasil entrou definitivamente numa fase de ampliacao da concentracao e centralizacao do capital, com a superioridade do capital imperialista: passamos ao predominio dos monopolios e do capital financeiro, com o favorecimento e o impulso do Estado (lANNI, 1981). No campo da saude, a ditadura significou, em primeiro lugar, uma inversao de prioridade da saude publica, organizada pelo Ministerio da Saude, para a saude curativa, individual.

A medicalizacao da vida social foi imposta, tanto na saude publica quanto na previdencia social. O setor saude precisava assumir as caracteristicas capitalistas, com a incorporacao das modificacoes tecnologicas ocorridas no exterior. A saude publica teve, no periodo, um declinio maior que aquele ocorrido no inicio dos anos 60, e a medicina previdenciaria cresceu, principalmente, apos a reestruturacao do setor em 1966. (BRAVO, 2010, p. 42). No que se refere ao subsetor de servicos, e no periodo da ditadura que a cobertura, antes restrita aos segmentos assalariados formais, se expande para quase a totalidade da populacao. Durante todo o periodo ditatorial, o Estado interviu sobre a Questao Social por meio do binomio repressao-assistencia, ampliando o acesso a inumeras politicas sociais, dentre elas a saude (BRAVO, 2010, p. 41), mas essa ampliacao se deu pela compra de servicos do setor privado. Sem o Estado, o setor privado nao teria como forjar autonomamente um mercado consumidor, dada a pauperizacao da populacao (BRAVO, 2010; MENICUCCI, 2007).

Desde o Instituto Nacional de Previdencia Social (INPS) ate a formacao do Instituto Nacional de Assistencia Medica da Previdencia Social (Inamps), em 1977, a prestacao dos servicos de saude era organizada pelo Estado por tres subsistemas: o proprio, o contratado e o conveniado.

O subsistema proprio caracterizava-se por cobrir os servicos ambulatoriais (70% da cobertura na decada de 1970) e minoritariamente os servicos de internacao vinculados aos hospitais (20%). No que tangia aos servicos hospitalares, cabia ao Estado garantir os procedimentos mais caros e complexos, pouco lucrativos para o setor privado, o que se perpetua ate hoje (MENICUCCI, 2007).

O subsistema contratado era formado pela rede de servicos privados, para suprir a suposta insuficiencia do setor publico. Esse subsistema era responsavel por 80% dos servicos de internacao, sendo remunerados com base em uma tabela de precos por ato medico, chamada unidade de servico (US). Assim, quanto mais intervencoes, e quanto mais complexas e com maior densidade tecnologica, maiores eram os ganhos do setor privado contratado, estimulando, ainda, a corrupcao e o superfaturamento (ME-NICUCCI, 2007). Alem de representarem a maior parte das internacoes cobertas pelo INPS, era esse instituto o responsavel pelo pagamento de 90% do total de internacoes realizadas no pais durante a decada de 1970, comprovando a centralidade do fundo publico no crescimento dos servicos hospitalares privados de saude no Brasil.

Alem da compra de servicos, foi por meio do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), criado pela Lei n. 6168 de 9 dezembro de 1974, que se ampliou a construcao de hospitais da rede privada. Apesar de a lei prever que os emprestimos a juros baixos concedidos para financiamento de infraestrutura deveriam ser no limite de 30% para o setor privado e 70% para o publico, no caso da saude, 20,5% foram para o setor publico e 79,5% foram para o setor privado (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1985).

O terceiro subsistema era o conveniado, no qual o INPS garantia subsidios para que as empresas arcassem com a atencao medica a seus empregados. Poucas empresas tinham servicos proprios. A maioria comprava servicos de empresas medicas, que sao remuneradas por um sistema de pre-pagamento per capita, independente do uso de servicos. Essas empresas medicas sao a genese das empresas de planos de saude, e a logica dos planos por empresas com subsidios estatais (3)" hoje o principal mercado para essa atividade " tem nos convenios com o INPS sua origem e um estimulo fundamental para seu crescimento (MENECUCCI, 2007; OCKE-REIS, 2012). Ainda assim, os convenios nao cobriam atendimentos mais complexos, que ficavam por conta da rede publica do INPS.

Em 1968, foi elaborado o Plano Nacional de Saude. Embora tenha sofrido resistencias, sendo apenas parcial e experimentalmente implantado, seus eixos sao paradigmaticos no privilegiamento do setor privado e semelhantes as propostas privatistas que disputam as acoes do Estado ate hoje. O plano atribuia ao Estado as atividades de assistencia a saude, mas preferencialmente pela compra de servicos privados. Desse modo, garante a livre escolha pelo medico e pela instituicao, copagamento dos usuarios e, ate mesmo, arrendamento de hospitais publicos para o setor privado, proposta semelhante aos novos modelos de gestao atuais (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1985).

Os subsetores de medicamentos e equipamentos tambem cresceram no periodo da ditadura. Em 1971 foi criada a Central de Medicamentos (Ceme), com a proposta de ampliar a capacidade competitiva da industria nacional frente as transnacionais, o que efetivamente nao ocorreu. A Ceme se limitou a ser uma...

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