Problema grego ou 'problema alemão'?

AutorAntónio José Avelãs Nunes
Páginas311-344
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XXI
‘PROBLEMA GREGO’ OU
‘PROBLEMA ALEMÃO’?
21.1. Este texto estava praticamente concluído quando se iniciou,
em junho de 2015, o dramático processo de ‘negociações’ entre os paí-
ses e instituições credores da Grécia e o governo deste país, eleito com um
mandato para pôr termo à austeridade que arruinou a economia do país
e provocou uma grave crise social.
Sucessivas reuniões decisivas para o futuro da Grécia iam tornando
claro que não havia negociações nenhumas, apenas ‘combates’ em que os
credores procuravam impor à Grécia devedora mais medidas de austerida-
de, batendo sempre a tecla da necessidade de cumprir as regras, ainda que
estas tenham sido já classificadas de “estúpidas” e “medievais” por um
Presidente da Comissão Europeia em exercício de funções.
Os ‘responsáveis’ europeus deram, durante esses longos dias,
um triste espetáculo de mediocridade, de hipocrisia e de falta de cul-
tura democrática. Em condições de democracia, a política e os políticos
servem para construir soluções para os problemas que afligem os
povos (é isto a democracia: governo para o povo), ainda que para tanto
tenham de meter as regras na gaveta. Porque cumprir regras é tarefa de
burocratas, não de políticos.
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ANTÓNIO JOSÉ AVELÃS NUNES
Sabe-se que o Governo grego propôs medidas de combate à cor-
rupção e à evasão e fraude fiscais, bem como o aumento dos impostos
sobre o rendimento dos mais ricos, sobre os lucros das grandes empresas
e sobre os produtos de luxo.
É certo que rejeitou as propostas absurdas (provocatórias) dos
credores de alcançar um saldo primário positivo de 3% do PIB em 2015
e 4,5% em 2016, mas aceitou trabalhar para um saldo positivo de 0,6%
do PIB em 2015, 1,5% em 2016, 2,5% em 2017 e 3,5% nos cinco anos
seguintes. Em consequência, teve de aceitar também o aumento do IVA
sobre os medicamentos para 6,5% e do IVA sobre produtos alimentares
básicos, água e eletricidade para 11% (os credores queriam impor taxas
mais elevadas para quase todos os bens e obrigar o Governo a acabar
com os descontos fiscais para as ilhas gregas).
O Governo de Atenas aceitou igualmente um programa de pri-
vatizações que renderia 3,2 mil milhões de euros em 2015/2016, mil
milhões de euros em 2017-2019 e 10,8 mil milhões de euros no perío-
do posterior a 2020. Mas propôs que se constituísse, com essas receitas,
uma provisão para garantir os direitos dos trabalhadores das empresas
privatizadas e para investimento e que o restante fosse canalizado para
financiar a Segurança Social e um banco de investimento que o Gover-
no pretendia criar.
Tsipras aceitou aumentar progressivamente a idade de reforma e
diminuir gradualmente as reformas antecipadas aos 62 anos. E admitiu
adiar para depois de 2016 a reposição do salário mínimo ao nível de
2010, mas propôs igualmente a adoção de medidas de combate ao ‘tra-
balho negro’ e à fuga aos descontos para a Segurança Social.
Perante estas cedências relativamente ao seu programa eleitoral (o
chamado Programa de Salónica), o Governo do Syriza acreditou (por
ingenuidade ou porque queria creditar) que os credores iriam aceitar al-
gumas medidas de alívio no que toca ao montante dos juros a pagar em
2015/2016 e proporcionariam à Grécia um programa de financiamento
de medidas destinadas a promover o crescimento econômico do país no
período 2016-2021.
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‘PROBLEMA GREGO’ OU ‘PROBLEMA ALEMÃO’?
21.2. Está visto que, quando se trata de negócios, a ‘fé’ não ajuda
muito… Sobretudo nesta ‘Europa’ reduzida a um ringue de luta livre
ente devedores e credores, com estes a recorrer a toda a espécie de golpes
baixos. Neste contexto, apesar destas cedências do Governo grego, os
representantes dos credores iam fazendo proclamações verdadeiramente
insultuosas para os governantes gregos e para o povo da Grécia. O Go-
verno da Grécia e o seu Primeiro-Ministro (que apresentou um progra-
ma social-democrata moderado, cometendo talvez o ‘crime’ de ressus-
citar’ Keynes e as políticas keynesianas) eram rotulados de radicais.255
255 Quem ler o Programa de Salónica (o programa eleitoral do Syriza) não pode deixar
de concluir que ele não vai além do que, segundo os critérios de há um quarto de
século, seria considerado um programa social-democrata moderado.
Quanto a Yanis Varoufakis, ele tornou-se, rapidamente, o alvo mais apetecido das
críticas da eurocracia e dos comentadores orgânicos, talvez porque, pouco depois de ter
tomado posse, ele próprio se rotulou de marxista heterodoxo. Talvez porque a sua atuação
e as suas frequentes declarações públicas dão dele a imagem de um indivíduo algo
exibicionista, desejoso de projeção mediática, imprevisível, por vezes desconcertante,
o que o torna um bom objeto de notícia. Mas ele é também um provocador incómodo
dos políticos ‘oficiais’ e um iconoclasta relativamente a certos comportamentos sociais
e políticos. Já o vi comparar aos ‘traidores’ Julien Assange (fundador do WikiLeaks, que
divulgou milhares de documentos secretos dos EUA) e Edward Snowden (o quadro
dos serviços secretos dos EUA que divulgou os programas de espionagem à escala
mundial do Big Brother americano), porque, como eles, Varoufakis transgrediu as regras
do silêncio e do segredo vigentes nos meios da política e da finança (o que é praticamente
a mesma coisa), em homenagem a valores e a interesses que os burocratas aplicadores de
regras querem matar e anular.
No plano da ação política, sabe-se que, antes de se aproximar de Tsipras e do Syriza,
Varoufakis foi assessor do Primeiro-Ministro George Papandreou. Segundo li há tempos,
a sua preocupação (ou o seu objetivo) fundamental é salvar o capitalismo de si próprio,
uma preocupação tipicamente keynesiana. Ainda há pouco (agosto de 2015) Varoufakis
‘chorou’, num depoimento publicado em Le Monde Diplomatique, o fim da “Europa
que, desde a adolescência, sempre considerei [ele, Varoufakis] como uma bússola”. Li
algures que uma outra preocupação de Varoufakis é a de salvar a UE dos ‘abusos da
Alemanha’, por entender – presume-se – que, sem estes ‘abusos’, a sua “bússola” seria
infalível. Quem pensa assim não pode considerar-se um perigoso esquerdista.
Pelo que conheço dele, creio que Yanis Varoufakis é um neo-keynesiano, à maneira de
Paul Krugman, Joseph Stiglitz e James Galbraith, o que já é ser muito de esquerda, num
tempo em que os sociais-democratas europeus são cúmplices dos neoliberais na morte de
Keynes e na salga da sua sepultura, para que não volte a nascer. E a entrevista ao New
Statesman é um documento interessante que ajuda a compreender o que passou a seguir
ao referendo de 5 de julho de 2015, uma história de que creio sabemos ainda muito pouco.

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