Problemas de gênero na jurisprudência brasileira: (des)fazendo a lei Maria da Penha

AutorMarcia Nina Bernardes, Mariana Imbelloni Braga Albuquerque
CargoPUC-Rio, Rio de Janeiro - RJ, Brasil/PUC-Rio, Rio de Janeiro - RJ, Brasil
Páginas231-256
Problemas de gênero na jurisprudência
brasileira: (Des)fazendo a Lei Maria da Penha
Gender Troubles in Brazilian judicial decisions: (Un)doing the
Maria da Penha Law
Márcia Nina Bernardes*
PUC-Rio, Rio de Janeiro – RJ, Brasil.
Mariana Imbelloni Braga Albuquerque**
PUC-Rio, Rio de Janeiro – RJ, Brasil.
1. Introdução
A Lei Maria da Penha (Lei 11340/ 06, ou LMP), aprovada como resultado
de uma grande mobilização de redes feministas domésticas e transnacio-
nais, representou um importante passo no enfrentamento à violência do-
méstica e familiar no Brasil. Após um esforço conjunto de diversos órgãos
governamentais e de organizações da sociedade civil, o anteprojeto da lei
preparado pelo Consórcio Feminista foi discutido intensamente em dife-
rentes comissões interministeriais e no Congresso, até que fosse aprovado
como um dos textos normativos mais democráticos do país, desde a pró-
pria Constituição Federal. Durante seus 13 anos de vigência, a legislação
protetiva enfrentou também forte resistência jurídica e social à sua aplica-
ção efetiva, mesmo em contextos nos quais as pautas de proteção dos direi-
tos da mulher encontravam forte apoio político. Atualmente, em momento
de recrudescimento conservador em relação às questões de gênero, a Lei
Maria da Penha segue mais do que nunca em disputa quanto a sua aplica-
ção e o alcance da sua proteção (Bernardes 2014, 2019).
* Doutora em Direito (NYU School of Law). Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-
-Rio. Pesquisadora de produtividade do CNPq. E-mail: marcianinabernardes@gmail.com.
** Mestre em Ciências Jurídicas (PUC-Rio). E-mail: mariana.imbelloni@gmail.com.
Direito, Estado e Sociedade n. 55 p. 231 a 256 jul/dez 2019
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Direito, Estado e Sociedade n. 55 jul/dez 2019
No processo de aprovação da Lei 11.340/06 o movimento feminista
brasileiro conseguiu trazer para o debate nacional parâmetros construídos
internacionalmente ao longo de trinta anos. O contexto político que per-
mitiu a aprovação desta lei, depois de tanto tempo de negação e negligên-
cia do Estado diante do problema da violência doméstica contra mulheres
no Brasil, deve-se em grande medida ao caso Maria da Penha Maia Fer-
nandes, que resultou, em 2001, em um relatório da Comissão Interame-
ricana de Direito Humanos, solicitando, dentre outras medidas, alteração
na normativa interna brasileira sobre violência doméstica. A exposição de
motivos da LMP menciona, além do caso Maria da Penha, as obrigações
contraídas pelo Brasil por força da Convenção Belém do Pará, da OEA,
do Plano de ação da IV Conferência Internacional sobre Mulher (Beijing
1995), da ONU, e da Convenção para Eliminação de todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (CEDAW), também da ONU.
No entanto, após a sua promulgação, o texto passa a ser objeto de
interpretação da comunidade jurídica, que não está necessariamente ali-
nhada com o debate feminista e que, via de regra, desconhece a discussão
transnacional sobre violência doméstica. Toda a produção interdisciplinar
(e política) de entendimentos acerca das causas e dos contornos deste pro-
blema f‌icam invisíveis para os aplicadores do direito. Inicia-se, então, uma
nova rodada de disputas acerca de aspectos chave deste fenômeno que re-
sultaram em questionamentos jurídicos sobre a constitucionalidade da lei
nos tribunais brasileiros. No julgamento das ADC 19 e ADI 4424, em 08
de fevereiro de 2012, o Supremo Tribunal Federal pôs f‌im a muitas dessas
controvérsias, mantendo o caráter de ação af‌irmativa da lei, que protege
apenas as mulheres contra a violência doméstica, e afastando a aplicação
de institutos despenalizadores da lei 9.099/95. No entanto, subsistem in-
teressantes interpretações dos termos centrais da def‌inição de violência
doméstica contra mulher trazida na lei.
Neste artigo, pretendemos examinar controvérsias judiciais na def‌ini-
ção da expressão “ação ou omissão baseada no gênero”, do artigo 5o da
lei, a partir de um olhar eminentemente epistemológico, tendo como re-
ferência o trabalho da f‌ilósofa estadunidense Judith Butler, em especial,
sua crítica à identidade e o seu conceito de “performatividade de gênero”.
A partir da leitura de acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
(TJ-RJ), af‌irmamos que não há, e nem pode haver, def‌inição f‌ixa, estável e
incontroversa das categorias “mulher”, “sexo” e “gênero”, discutindo algu-
Márcia Nina Bernardes
Mariana Imbelloni Braga Albuquerque

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