Os problemas de legitimação dos delitos de acumulação e a depuração do Estado de Direito Ambiental na tutela do meio ambiente. A proposta de recuperação do injusto penal ambiental sob o crivo da ofensividade de cuidado-de-perigo

AutorMatheus Almeida Caetano
Ocupação do AutorDoutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra
Páginas327-444

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Após a apresentação do contexto de surgimento do tema, cercado pelo problema tedesco da poluição hídrica proveniente dos despejos de esgotos domésticos, de lixo e das cargas de óleos, detergentes, fertilizantes minerais e de outros subprodutos de atividades agropecuárias e agrárias nos rios; bem como introduzidos os traços gerais da estrutura acumulativa por Kuhlen, neste quarto capítulo, os delitos de acumulação serão submetidos a uma criteriosa análise para se ponderar a sua (in)viabilidade na tutela penal dos bens ambientais no Estado de Direito Ambiental.

Neste momento, pretende-se perscrutar os principais problemas de legitimação dos delitos de acumulação, destacadamente as críticas de violação dos princípios da culpabilidade, do direito penal do fato, da igualdade, do in dubio pro reo, da individualização e proporcionalidade da pena, da presunção de inocência, da proporcionalidade1030e da ofensividade. Em especial, as questões da ausência de qualquer forma de ofensa e do atropelamento da responsabilidade subjetiva serão deixadas para um segundo momento por serem consideradas como as mais nítidas violações promovidas pela estrutura da acumulação no mundo jurídico-penal, dentro do qual essa não se faz reconhecer e identificar-se como Direito Penal. Em outras palavras, a ofensividade e a responsabilidade subjetiva constituem o DNA do Direito Penal Moderno, aquele em que o equilíbrio entre o homem e a sociedade, entre os direitos e os deveres, entre o criminoso e a vítima, entre a defesa e a acusação, entre a dogmática e a política criminal, entre os planos real e normativo, entre

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tantos outros binômios conservam-se no Estado Democrático de Direito de cariz substancial ou material.

Ao final será proposto um modelo de injusto penal ambiental de traços materiais que seja capaz tanto de tutelar o meio ambiente com mecanismos mais avançados que o Direito Penal Nuclear quanto de não se desviar para os caminhos sombrios do Funcionalismo [com destaque para o Sistêmico, no qual o homem perde a sua natureza em relação ao sistema e ao ambiente (a forma binária operativa, sistema/ambiente) e, por isso, não se reconhece e se perde em meio ao “vazio funcional”1031].

Entrever-se-á uma proposta corretiva dos delitos de acumulação capaz de recuperar a total ausência de ofensa do pensamento de Kuhlen, sendo importante para legitimar a tutela penal de bens jurídicos ambientais submetidos a contextos complexos como os da sociedade de risco. Trata-se da teoria dos “crimes de perigo abstrato em contextos instáveis” proposta por D´Avila, cuja formulação é compatível com os postulados do Estado de Direito Ambiental, conforme os seguintes pressupostos: (4.5.1) a assunção da forma de ofensa de cuidado-de-perigo, (4.5.2) o afastamento da racionalidade da repetição do grande número de condutas individualmente ínfimas de ofensividade ao bem jurídico, com um lançar de olhos para a complexidade do contexto de instabili-dade no qual estão expostos os bens jurídicos ambientais e (4.5.3) a indispensabilidade do injusto material. Em seguida pretende-se apresentar a proposta corretiva do delito acumulativo de uma forma integrada, cotejando-a em face dos delitos da Lei Federal 9.605/98 como possível

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contribuição hermenêutica para uma aplicação mais justa e equilibrada do direito penal ambiental brasileiro.

Como desfecho deste capítulo, o Estado de Direito Ambiental será resgatado dos desvios promovidos no campo penal pela teoria de Kuhlen, apresentando-se como mecanismo aberto ao tratamento dos problemas ambientais que decorrem de danos acumulativos, mas por meio de estruturas jurídico-políticas situadas fora do Direito Penal. Esboçados os elementos principais a serem desenvolvidos, seguem abaixo os essenciais problemas de legitimidade jurídico-penal dos delitos de acumulação.

4. 1 Os problemas de legitimação dos delitos de acumulação

Muito embora o presente trabalho pretenda analisar os delitos de acumulação sob o crivo privilegiado da ofensividade, precisa e justificadamente pela total ausência dessa naqueles como problema central a ser debatido logo mais, é chegado o momento de apontar outros déficits de legitimação jurídico-penal dessa proposta de Kuhlen. Destaca-se que dois pontos criticáveis dessa estrutura em estudo não considerados nesse lócus serão posteriormente expostos de maneira mais adequada, conforme a sistematização do presente capítulo. Prorroga-se, então, a análise dos problemas da passagem de uma subjetiva (verdadeiro cânone do Direito Penal) a uma quase ou real responsabilidade penal objetiva e da total desconsideração da ofensividade (verdadeiro divisor de águas entre os ilícitos administrativo, civil e criminal).

À medida que se mostrar relevante, cruzar-se-ão as defesas de Kuhlen e de alguns dos defensores da noção acumulativa com as colocações críticas dos demais autores em relação aos problemas de ordem legitimante dos delitos de acumulação. No primeiro bloco serão apresentadas as tensões desses com os princípios da culpabilidade [e a consequente sanção ex-iniuria tertii (4.1.1)], da proporcionalidade (4.1.2), da isonomia (4.1.3), da presunção de inocência e do in dubio pro reo (4.1.4) e da personalizção e proporcionalidade da pena (4.1.5).

Passa-se à primeira (e uma das mais divulgadas) das críticas ao modelo acumulativo de delito: o atropelamento da culpa e a sua responsabilidade ex-iniuria tertii (por fatos de terceiros).

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4.1. 1 A culpabilidade e a consequente sanção ex-iniuria tertii

Sem sombra de dúvida, a objeção de violação do princípio da culpabilidade nos delitos de acumulação é uma das mais difundidas pela dogmática jurídico-penal, pois os indivíduos seriam punidos naqueles por condutas alheias e não pelo que fazem. Em termos sintéticos, esse autor defende a necessidade de se adotar uma proibição sancionatória de condutas, sem a qual essas seriam executadas em grande número por vários indivíduos, criando um impacto nocivo sobre o ambiente1032.

Com o intuito de esclarecer o objetivo de sua proposta de delitos de acumulação e simultaneamente responder à crítica de violação do princípio da culpa, esse penalista justifica que a proibição das pequenas quotas de poluição, quando acompanhada de sanções penais, seria uma necessidade inegável da atual sociedade industrializada de massas com seus milhões de cidadãos, que conduzem suas respectivas vidas segundo o mais elevado bem-estar1033. Por meio de uma comparação retórica, Kuhlen adverte que o modelo social atual1034é bem diverso daquele de uma tribo indígena com poucos membros que habitavam uma grande extensão territorial sem contaminação nociva do meio ambiente.

Questiona, assim, o autor se a consideração de comportamentos de terceiros realística e expectavelmente sobre a eliminação de resíduos em massa não teria toda a relevância e não exigiria novas padronizações. Eliminação essa que ele deixa claro, “[...]ultrapassa a defesa de riscos

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à saúde”, denotando a sua preocupação com o ambiente propriamente dito e que seria dispensável na tribo de indígenas por viverem há séculos em harmonia com a natureza1035. Segundo ele, esse questionamento deveria ser respondido antes de quaisquer ataques ao injusto acumulativo proposto e chega a citar Schick, que assegura: “[...] a contaminação das águas seguramente não é nenhuma malum per se1036.

Quanto às críticas, Müller-Tuckfeld aponta que no delito de acumulação são abarcadas contribuições de vários indivíduos ao fato danoso que nem mesmo chegam a ser abstratamente perigosas, infringindo-se, desse modo, o princípio da culpabilidade. Por isso, ele defende o completo desaparecimento dessa categoria da seara jurídico-penal1037. A única saída para sustentar essa forma de incriminação parece ser a burla da culpa, o que fundamenta uma sanção ex-iniuria tertii, na qual se punem pessoas por comportamentos individuais alheios com fundamento na consideração hipotética de suas massivas repetições por outras pessoas. Primeiro, no âmbito da tipificação penal, o fato previsto como crime finda por escorregar do âmbito de controle de cada indivíduo considerado isoladamente, pois somente haverá crime se outras pessoas também praticarem tal...

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