Do despacho de processamento da recuperação judicial de empresas na nova lei N. 11.101/2005. Cabe recurso?

AutorMaria Celeste Morais Guimarães
Páginas110-121

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I - Introdução

Dispõe o art. 52 da nova Lei n. 11.101/2005 que, "estando em termos a documentação exigida no art. 51 desta Lei, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial".

A ação de recuperação judicial, ou o seu processo, inicia-se, assim, com o deferimento do pedido pelo juiz que a manda processar. Nesse instante, surgem as principais conseqüências que dela decorrem, dentre elas, a suspensão do curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário.

É o despacho do juiz, pois, que determina essas medidas, daí a importância deste ato judicial no processo. O despacho judicial de processamento do pedido de recuperação não é novidade no direito con-cursal brasileiro. O Decreto-lei n. 7.661/1945, no que dispunha sobre a concordata preventiva, foi alterado pela Lei n. 7.274 de 10.12.1984, para cuja elaboração concorreu o renomado jurista paranaense Rubens Requião. Visando tornar mais ágil e eficiente a ação de concordata, pela Portaria n. 115, de 24.2.1983, foi constituído um Grupo de Trabalho nomeado pelo então Ministro da Justiça, que apresentou sugestões e elaborou propostas de documento legislativo disciplinador de Falência e Concordatas. Dentre as medidas sugeridas, que foram incorporadas ao Decreto-lei n. 7.661/1945, pela citada Lei n. 7.274/1984, estava a introdução no processo da concordata preventiva do "despacho de processamento do pedido", previsto no então § 1o, doart. 161.

A finalidade de tal despacho, assim denominado, para não confundi-lo com a sentença concessiva da concordata preventiva, era a de introduzir no processo uma fase intermediária, de natureza cognitiva, entre o pedido e a sentença, de modo a propiciar ao magistrado maiores elementos na sua decisão de conceder ou não a concordata, vez que no regime do Decreto-lei n. 7.661/1945, a concordata sabidamente era uma concessão do juiz, nos dizeres de Fábio Konder Comparato, uma verdadeira concordata-sentença.

Tal experiência, como se vê, foi mantida pela Lei n. 11.101/2005, que, em seu art. 52, dispôs que "o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial".

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Do despacho ordenatório que defere ou indefere o processamento do pedido de recuperação judicial a lei não previu recurso. Seria ele, então, irrecorrível ou, ao silêncio da lei, poder-se-á aplicar o sistema recursal do CPC?

É sobre tais questões que iremos debater no presente trabalho, com o fim de trazer uma contribuição à boa aplicação da nova lei de falência e recuperação judicial de empresas pelos seus operadores.

II - Da natureza jurídica do despacho judicial de processamento do pedido de recuperação judicial

Inicialmente, é bom que se esclareça que, na vigência do Decreto-lei n. 7.661/1945, a lei também era omissa acerca do recurso cabível do despacho que deferia o pedido de processamento da concordata preventiva. Assim, a doutrina e a jurisprudência, à época, divergiam sobre a possibilidade ou não de interposição de recurso, como se vê das decisões a seguir colacionadas:

A favor: "Recurso - Agravo de instrumento - Despacho que defere processamento de concordata preventiva - Aplicabilidade do sistema recursal do Código de Processo Civil - Arts. 207 e 210 do Decreto-lei 7.661/1945 - Cabimento do recurso" (RJTJESP 135/305).

Contra: "Concordata - Despacho inicial - O despacho do juiz mandando processar a concordata não enseja recurso. Recurso especial não atendido" (STJ, RT 675/227).

Com a edição da Súmula 264 do STJ, pacificou-se o entendimento, ao tempo do regime do Decreto-lei n. 7.661/1945, de que não cabia recurso do despacho judicial de processamento da concordata preventiva: "É irrecorrível o ato judicial que apenas manda processar a concordata preventiva".

É sabido que na sistemática processual brasileira, o juiz está dotado de duas espé-cies de poderes: o de dar solução à lide, e o de conduzir o feito segundo o procedimento legal, resolvendo todos os incidentes que surgirem até o momento adequado à prestação jurisdicional. Durante a marcha processual e no exercício de seus poderes, o juiz pratica atos processuais de duas na-turezas: decisórios e não decisórios.

Quanto aos atos decisórios propriamente ditos, ensina Humberto Theodoro Júnior (2007:261)1 "visa-se a preparar ou obter a declaração da vontade concreta da lei frente ao caso sub iudice". A enumeração dos atos decisórios do juiz está feita pelo próprio Código, que, no art. 162, os classifica em sentença, decisão interlocu-tória e despachos.

O próprio Código, para superar divergências doutrinárias em torno da classificação e definição dos atos decisórios do juiz, os conceituou no art. 162 e parágrafos, assim dispostos:

  1. Sentença: "ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269" (com a redação dada pela Lei n. 11.232, de 2005);

  2. Decisão interlocutória: "é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente" (art. 162, § 2°); e

  3. Despachos: "todos os demais atos do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento da parte, a cujo respeito a lei não estabelece outra forma" (art. 162, §3o).

O mestre Alfredo de Araújo Lopes da Costa (1941:324),2 ainda ao tempo do Código de 1939, com incontestáveis propriedade e atualidade sustentava que: "Os atos do juiz regulam a marcha do processo (despachos de simples movimento: manda citar o réu, a testemunha, o perito, designar

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dia para a vistoria, ordenar vista ao autor, marcar dia e hora para audiências), a formação do fundo do processo (mandar juntar documentos, inquirir testemunhas, tomar o depoimento da parte) ou decidem as questões suscitadas, sobre o processo ou sobre o mérito".

E conclui o eminente processualista: "As duas primeiras espécies representam a direção processual, que cabe ao juiz. São despachos. Os despachos podem ser positivos ou negativos, deferindo ou indeferindo os requerimentos. O termo, etimologi-camente, melhor se aplica aos atos de simples impulso processual, aos que o Código nacional (de 1939) chama de 'despachos de expediente'. A última espécie é constituída pelas decisões ou sentenças. Os atos do juiz são declarações de vontade. Não há vontade sem deliberação. Assim, todos eles são decisões, neste sentido".

Vê-se, portanto, que, às escancaras, no caso do despacho previsto no art. 52 da Lei n. 11.101/2005, a despeito de o legislador tê-lo intitulado "despacho judicial" de processamento do pedido, não se trata apenas de um ato de impulso do processo, deferindo o requerimento do autor. Mas, sim, de decisão, eis que importa em deliberação do juiz no sentido de constituir um novo estado de direito, cujos efeitos repercutirão não só para o autor - o empresário ou sociedade empresária, como também para os credores e demais terceiros interessados que serão afetados por este novo estado, que é o da recuperação judicial.

Pela redação da Súmula 264 do STJ - "é irrecorrível o ato que apenas manda processar" - verifica-se que aquela Colen-da Corte enxerga este ato como apenas de impulso do processo. Esquece-se, contudo, de que, a partir dele, vários efeitos são produzidos no processo, inclusive erga om-nes, afetando terceiros não intervenientes.

O ato que manda processar o pedido de recuperação não pode ser resumido a um mero despacho de expediente, como poderia insinuar o próprio nome - despacho - que a ele foi dado pelo legislador em 1984 (Lei n. 7.272/1974), o qual foi mantido pelo de 2005 (Lei n. 11.101).

Como explicar, então os efeitos que dele derivam? No caso da falência, os efeitos em relação à pessoa do falido, aos seus bens, quanto aos direitos dos credores e aos contratos, decorrem da sentença decla-ratória (art. 99 da Lei n. 11.101/2005), como já ocorria com o Decreto-lei n. 7.661/1945 (art. 14). No momento em que o legislador, ao modificar o processo da concordata preventiva - pela já citada Lei n. 7.274/1974 -, introduziu o despacho judicial de processamento do pedido, pretendeu criar uma fase intermediária no processo, de natureza cognitiva, destinada a propiciar ao juiz elementos de convicção acerca do mérito do pedido.

Como já salientado na introdução deste trabalho, a concordata preventiva no direito brasileiro constituía, nos dizeres de Rubens Requião (1993:62),3 "um benefício outorgado pelo Estado, através de sentença judicial, ao empresário honesto e de boa-fé, mas infeliz nos seus negócios". Sua finalidade era a de facilitar o pagamento dos credores, com dilações de prazo ou remissão de parte da dívida, e, conseqüente-mente, permitir ao empresário evitar a falência, reconstituindo sua atividade e nela prosseguindo. Para ser concedida a concordata, o empresário deveria, portanto, merecer, fazer jus ao benefício. Por isso, a lei impunha várias condições, requisitos, que, comprovados pelo devedor, ensejariam o deferimento do pedido por sentença. Embora o instituto tivesse mantido a denominação de "concordata", isto é, um acordo - pacto entre o devedor e os credores - sob o regime do Decreto-lei n. 7.661/1945 nada disso ele continha, porque o juiz prescindia da manifestação dos credores para concedê-lo ou não.

Aí está a razão da introdução de um procedimento preliminar na concordata

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preventiva, pelo legislador de 1974: permitir ao juiz formar seu convencimento acerca de ser devido ou não o benefício ao devedor.

Se tal procedimento foi mantido pela Lei n. 11.101, de 2005, que em nada o alterou, é de se concluir, sim, que o instituto da recuperação judicial é também um benefício outorgado pelo Estado ao empresário que preencha as condições legais e demonstre sua viabilidade econômica de forma a prosseguir em sua atividade, de...

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