O processo de conhecimento e seus institutos: a origem no direito romano

AutorOtávio Augusto Inácio Massignan
CargoAnalista Jurídico do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Pós-graduado lato sensu em Direito Processual Civil junto da FATEC/FACINTER Doutorando em Ciências Sociais e Jurídicas junto da UMSA Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires/AR)
Páginas34-42

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Introdução

A o se analisar a evolução histórica do processo de conhecimento, comparando a antiguidade com o modelo de processo civil que está positivado no Código de Processo Civil, é válido ao operador jurídico compreender como a técnica de se fazer a jurisdição atualmente deriva do direito romano e que muito dos institutos aplicados no processo hoje estão umbilicalmente ligados em Roma. Em especial, é interessante o estudo dos institutos das condições da ação e o formato tecnocrata e burocrático do procedimento comum ordinário. Não se pode olvidar que, para tanto, adentrar-se-á também na disciplina de jurisdição e competência, teoria do Estado e recursos, ainda que de forma perfunctória, porque o cerne do estudo reside no processo de conhecimento e seus institutos. Em síntese, é uma análise crítica de como o processo de conhecimento civil atual deriva do direito romano, em especial quanto às semelhanças entre o processo formulário dos pretores e o trabalho que o advogado contemporâneo realiza quando escreve na petição inicial a causa de pedir. Analisase o porquê de o atual sistema de processo civil ter esse modelo de aplicar justiça, buscando nas raízes históricas do direito romano uma possível justificativa para contradizer as palavras do filósofo alemão Max Webber, em sua obra Sociologia, quando afirma que o processo jurídico é o processo burocrático por excelência.

Ao entender como os três modelos de Roma têm aplicabilidade ainda hoje, e que o modelo jurídico – institutos do direito processual civil – vai se transformando na história do mundo, mas permanece sempre com uma essência comum (v. g. petição inicial, citação,

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provas etc.), é importante para o operador do direito saber de onde surgiu o atual modelo de aplicar a justiça civil, o processo civil. Para compreender como se resolvem os conflitos de ordem civil entre os cidadãos de um Estado é preciso saber das raízes históricas do surgimento do direito processual civil, em especial quanto ao processo e suas características. Isso torna mais fácil a compreensão do atual sistema jurídico e ajuda a resolver antinomias, conflitos aparentes de normas. Torna, pois, o operador do direito um ser humano mais consciente daquilo que faz quando elabora uma petição inicial ou quando sentencia um conflito, visto que conhece o sentido teleológico e a origem do tipo de processo de conhecimento e seus institutos com os quais se trabalha hodiernamente.

Aliás, deve o jurista saber de onde surgiu seu instrumento de trabalho, a fim de que não se torne uma máquina automática e, quiçá, um escravo da lei, um tecnocrata, mas um ser consciente de que quando realiza um ato do processo, seja de redigir a petição inicial ou produzir uma prova, existe toda uma trajetória de desenvolvimento do instituto, surgida há muito tempo em Roma e transformada ao longo dos séculos por aqueles que vivem o direito processual civil em seus dia a dia de trabalho – advogados, magistrados, promotores de justiça, desembargadores, minis-tros, doutrinadores, serventuários da justiça etc.

Desenvolvimento

Diziam os romanos: “Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere”, ou seja: “Os mandamentos do direito são: viver honestamente, não lesar a ninguém e dar a cada um o seu”. O conceito de ius para os romanos consta no Digesto (parte do Corpus Juris de Justiniano): “ius est ars boni et aequi” (a arte do bem e do justo).

Não obstante, num primeiro momento deve-se estudar os conceitos de direito objetivo e direito subjetivo, sendo aquele o conjunto de normas jurídicas que compõem sistema e este o poder que temos de exigir do devedor a prestação que nos é devida. Existe a teoria normativa do direito, pela qual existe um conjunto de normas (gerais e abstratas) impostas pelo Staat (Estado) para disciplinar a conduta dos homens em sociedade. Além destas normas jurídicas, há aquelas de ordem moral, religiosa, cortesia e de que não têm a coação por intermédio do Staat. Deixar de cumprimentar alguém não traz consequência jurídica nenhuma, quiçá alguma antipatia ou arrogância, mas não cabe uma coerção de forçar alguém a ter que cumprimentar os outros porque inexiste na dura lex esta imposição. É diferente em relação aos militares, porque aqui há uma relação de subordinação hierárquica, que impõe o cumprimento sob pena das sanções previstas nas regras dos militares.

O direito objetivo (norma agendi) é preceito hipotético e abstrato, que serve para regulamentar o comportamento humano na sociedade, que tem a força coercitiva que esta lhe confere. O Staat estabelece esta força pela sanctio, a sanção jurídica pelo descumprimento da norma agendi. Esta sanção pode ser a nulidade ou a penalidade, ou ambas em conjunto. Como exemplo, podemos citar a lei Julia de vi Privata, de 17 a. C. que proibindo o uso da força, mesmo no exercício de um direito, declarava nulo o ato e aplicava uma penalidade: um credor que, fazendo justiça pelas próprias mãos, tomasse pela força o pagamento de seu crédito, além de perdê-lo também teria que devolver o objeto tomado. Analisando-se as regras de direito objetivo previstas na atual legislação veremos que existem regras para que o credor possa exigir seu crédito – através do processo de execução e do cumprimento da sentença, institutos previstos no direito processual civil. Mesmo na esfera cível, se o credor toma à força um bem do devedor sem o devido processo legal, poderia incidir, in tese, em cometimento de ato ilícito, porque assim consta do Código Civil (Lei 10.406/02) em seu artigo 187: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. No mesmo sentido existe sanção no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), quando assim expressa no artigo 42: “Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Temos, ainda, o artigo 345 do Código Penal (Decreto-lei 2.848//40), o qual tipifica o crime de exercício arbitrário das próprias razões: “Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: pena de detenção, de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.

De outra banda, o direito subjetivo (facultas agendi) é o poder de exigir um comportamento alheio (exemplos seriam o direito aos filhos, direito ao recebimento de remuneração pelo trabalho). Exemplo da diferença entre subjetivo e objetivo: existe a regra que

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responsabiliza o vendedor pelos vícios ocultos da coisa vendida – regra de direito objetivo. Já o direito de pedir a rescisão da venda pelo vício descoberto na coisa recém-comprada é um direito subjetivo do comprador. Assim está expresso no artigo 441 do Código Civil (BRASIL, 2002): “A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor” continuando no artigo 445 do mesmo codex: “O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento do preço no prazo de 30 dias se a coisa for móvel, e de um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; (...).”

Logo, o direito subjetivo é a faculdade ou poder consentido e garantido pelo direito positivo (aquele que está no ordenamento jurídico, nos códigos, leis). Portanto, protegendo, mediante ação, os direitos subjetivos violados, o Staat impede que os particulares façam justiça com as próprias mãos. É a ação o principal meio de tutela do direito subjetivo.

Os juristas romanos usavam a palavras ius no sentido de direito objetivo e direito subjetivo; visto que não eram eles dados à abstração, deixaram de articular a diferença entre estes dois conceitos. Isto porque a teoria e a prática estavam umbilicalmente ligados: o objetivo principal do direito é dirimir os conflitos de interesse pela aplicação prática da justiça. O direito e a ação são conceitos estritamente conexos no pensamento romano. Ora, se para cada direito objetivo existe uma forma de tutela (uma ação) junto ao Estado, então a ação é o meio de exercitar aquilo que a lei prevê. Não existe direito subjetivo sem ação judicial que o tutele em caso de violação. Já para os romanos o sistema não era esta dicotomia entre direito subjetivo e direito objetivo, mas um sistema de ações: em vez de dizer que alguém tem ou não tem um direito, diz-se que tem ou não tem a ação. Eles encaravam o direito sob um ângulo puramente objetivo, não conferindo às pessoas as faculdades que, para os modernos, são direitos subjetivos. No direito romano a vinculação entre o direito subjetivo e a ação é mais evidente do que no direito moderno porque em Roma estas eram típicas, a cada direito correspondia uma ação específica – no plano processual. Eles tinham um sistema de ações e não um sistema de direitos subjetivos, principalmente pela atuação do pretor no processo.

Essa ação desenvolveu-se em três momentos distintos na evolução do direito romano, três grandes sistemas de processo civil. Claro, como o sistema romano, o direito civil e o direito processual civil estão intimamente ligados, é preciso conhecer um pouco sobre o sistema processual dos romanos, o qual pode ser dividido em:
1) Ações da lei (legis actiones) – período pré-clássico (arcaico)
2) Formulário (per formulas) – período clássico
3) Extraordinário (cognitio extraordinaria) – pós-clássico

Atente-se ao fato de que as modificações de um período e sistema para outro não ocorreu de forma abrupta, mas sim paulatinamente.

Ademais, o sistema das legis actiones e o per formulas eram realizados por árbitros, uma imposição do Estado, que determinava a indenização a ser paga pelo ofensor e, caso este não cumprisse com o dever, o Estado assegurava a execução da...

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