O processo de criação da comunidade e da constituição dos governos

AutorMaren Guimarães Taborda
CargoProfessora adjunta de História do Direito e de Direito Constitucional da FMP
Páginas218-239
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Revista da Faculdade de Direito da FMP – nº 9, 2014, p. 218-239
O PROCESSO DE CRIAÇÃO DA COMUNIDADE
E DA CONSTITUIÇÃO DOS GOVERNOS:
inventário sobre as teses do jusnaturalismo moderno*
Maren Guimarães Taborda**
A soberania não é mista, mas sempre simples de-
mocracia, simples aristocracia, ou pura monarquia;
não obstante, na execução, todas as espécies de
governo podem ter um papel subordinado (Thomas
Hobbes, Elementos de direito natural e político).
Introdução. 1. O Tratado político de Spinoza. 1.1. Pressupostos metodológicos. 1.2. A justiça po-
lítica: três gêneros de poder público. 1.2.1. A repartição do poder soberano na Monarquia. 1.2.2.
Estados aristocráticos. 1.2.3. O terceiro Estado. 2. A lei natural, o contrato social e a constituição
dos governos em Hobbes e Locke. 2.1. O pacto social e a lei natural na obra de Hobbes. 2.2. Locke.
2.2.1. A liberdade natural. 2.2.2. O poder político e os direitos subjetivos. 2.2.3. Os governos e sua
forma. 2.2.4. Os poderes estatais. Conclusão.
Introdução
Da Antiguidade Clássica até a Idade Moderna, o problema do Estado1
foi estudado pelas doutrinas políticas segundo o ponto de vista dos gover-
nantes – dos que detêm o poder e a responsabilidade de conservá-lo: ex parte
principis2 –, com seus temas essenciais: a arte de bem governar, os poderes
*1Parte integrante do estudo “O processo de criação da comunidade e da constituição dos governos:
uma comparação entre as teses de Aristóteles e as do jusnaturalismo moderno”, publicado
originalmente na Revista Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 24, n. XXIII, p. 8-113, 2001.
**1Professora adjunta de História do Direito e de Direito Constitucional da FMP. Professora de
História do Direito e de Direito Constitucional da PUCRS (licenciada). Mestre e Doutora em Teoria
do Estado e do Direito pela UFRGS. Especialista em Gestão Tributária pela Universidad Castilla La
Mancha. Procuradora do Município de Porto Alegre. E-mail: tabordamaren@yahoo.com.br.
11‘Estado’ será sempre usado neste trabalho como sinônimo de organização política, embora se
tenha em mente os argumentos contra e a favor do uso contínuo dessa expressão, amplamente
difundida e aceita no inicío da Idade Moderna, em consequência do prestígio de que gozou a obra
de Maquiavel, como pormenorizadamente discutido por BOBBIO, Norberto. Estado, governo e
sociedade: para uma teoria geral da política. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992. p. 63 e ss.
22BOBBIO, op. cit., p. 63-64. Pensar o Estado do ponto de vista dos governantes ou do ponto de
vista dos governados decorre da relação política fundamental (mando-obediência) e a tradição de
pensar o problema do Estado ex parte principis “vai do Político de Platão ao Príncipe de Maquiavel,
Dr. Silvino Vergara Nava
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necessários ao cumprimento das diversas tarefas estatais, os vários ramos da
administração etc. Os gregos chamaram o Estado de polis (cidade), isto é, co-
munidade de cidadãos, independentemente da consideração territorial. Para os
romanos, inicialmente, a civitas também designava a comunidade dos cidadãos
ou res publica – coisa comum do povo. Com a transformação da cidade de
Roma em uma organização política estendida sobre um imenso território, al-
tera-se a terminologia, ainda que de modo imperfeito, e passa-se a identicar
o poder de mando (imperium) com a coisa pública. Identicada a res publica
com o imperium, o elemento mais essencial da organização política passa a
ser o poder dela mesma, e não os cidadãos. No período medieval, as palavras
germânicas correspondentes aos termos latinos regnum (reich, régne, regno,
reign) e imperium (imperio, empire) só se aplicavam a organizações políticas
muito extensas, indicando a dominação de um príncipe. No medievo europeu,
em virtude de o poder político derivar da propriedade do solo, surgem as ex-
pressões land, terra, terrae para designar a organização política com ênfase no
território. A palavra ‘Estado’ indicando a formação total da organização política
surgiu na Itália Renascentista, em função da existência de uma multidão de
congurações políticas – cidades e déspotas – que não podiam expressar cor-
retamente seu caráter através dos termos imperium, regnum, terra ou città. Os
governantes e seus partidários, nesses locais, eram conjuntamente chamados
lo stato’, expressão que, mais tarde, veio a compreender a existência coletiva
de um território, aplicável a todos os Estados (monarquias ou repúblicas, gran-
des ou pequenos, Estados-cidades ou Estados territoriais). Jacob Burckhardt3
arma que, nas cidades italianas do nal da Idade Média, “pela primeira vez, o
espírito do Estado europeu moderno manifesta-se livremente, entregue a seus
próprios impulsos” e, onde a tendência ao egoísmo é “superada, ou, de alguma
forma, contrabalançada, ali um novo ser adentra a história: o Estado, enquanto
criação consciente e calculada, enquanto obra de arte”. Com a ideia moderna
de Estado, surge a expressão que lhe corresponde, cunhada denitivamente
por Maquiavel, em O príncipe: Tutti li stati, tutti e’ domini che hanno avuto ed,
hanno imperio sopra li uomini, sono stati e sono o reppubliche o pricipati”.4
O moderno conceito legal de Estado – sujeito único e exclusivo da po-
da Ciropédia de Xenofonte ao Princeps christianus de Erasmo”.
3 A cultura do renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 22.
4 Para essas considerações, ver JELLINECK, Georg. Teoria general del estado. Buenos Aires:
Editorial Albatros, 1970. p. 95-97; FINLEY, Moses. L’invention de la politique. Paris: Flammarion,
1985. p. 21-49; e CROSSMAN, R. H. S. Biografía del estado moderno. México: Fondo de Cultura
Económica, 1986. p. 17-35.
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