O processo do trabalho e o novo Código de Processo Civil: critérios para uma leitura dialogada dos arts. 769 da CLT e 15 do CPC/2015

AutorJoão Humberto Cesário
CargoJuiz Titular de Vara no Tribunal Regional do Trabalho da 23a Região
Páginas134-151

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1. Introdução

A aprovação de um novo código de direito é sempre um momento especial na vida em sociedade. Impõe-se, com ela, a tormentosa tarefa da transição, que implica no estudo e na compreensão dos seus paradigmas, com vistas ao estabelecimento das primeiras balizas que orientarão a comunidade jurídica na aplicação do novo diploma.

A empreitada dos processualistas civis é dii cílima. Sem que se perca o fio condutor da tradição, essencial à estabilização da vida em sociedade, os estudiosos da matéria devem se debruçar sobre a Lei n. 13.105/2015 (novo Código de Processo Civil, doravante chamado neste estudo de CPC/2015), para extrair dela as técnicas processuais que permitirão a ei ciente prestação da jurisdição comum.

Ainda mais hercúlea será a atividade dos processualistas do trabalho, já que, além de compreenderem os elementos do CPC/2015, deverão promover o necessário diálogo dele com o Processo de Trabalho, almejando potencializar este último sem subtrair-lhe a essência.

A nossa primeira atribuição, nesse sentido, é a de pesquisar o signii cado e o alcance do art. 15 do CPC/2015, redigido nos seguintes termos:

Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.

Atentamente lido o antedito preceito, que nitidamente almeja enfrentar o aporético assunto das lacunas processuais, pelo menos duas primeiras indagações vêm de imediato à cabeça dos juristas do mundo do trabalho.

A primeira delas é se o art. 15 do CPC/2015 revogaria o art. 769 da CLT. A segunda é qual o sentido que a doutrina e a jurisprudência deverão emprestar às expressões "supletiva" e "subsidiariamente", tendo em conta o apotegma de que a lei não contém (ou pelo menos não deveria conter) palavras inúteis. Serão sobre essas e outras dúvidas que discorreremos adiante.

2. O art 15 DO CPC/2015 revoga o art. 769 da CLT?

Como é por demais sabido, nos termos do art. 2º, §§ 1º e 2º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior, sendo certo que a lei nova que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes não revoga nem modii ca a lei anterior.

Deveras, percebe-se sem grande esforço, ainda que respeitado o paradigma positivista antes indicado (que, diga-se de passagem, já não consegue dar resposta a muitos dos imbróglios normativos contemporâneos), que o art. 15 do CPC/2015 não detém a (des)virtude de revogar o art. 769 da CLT.

Ocorre que a novel legislação processual civil não revoga expressamente a disposição celetista. Note-se que a inteligência do art. 1.046

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do CPC/2015 dispõe que, ao entrar em vigor o novo Código (o que ocorrerá decorrido um ano da data de sua publicação oi cial - art. 1.045 do CPC/2015), as suas disposições se aplicarão desde logo aos processos pendentes, ficando revogada de um modo geral apenas a Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (antigo CPC). Outrossim, nas ocasiões em que o CPC/2015 revoga preceitos legais específicos de outras leis, como o faz ilustrativamente no seu art. 1.072, em nenhum momento faz menção ao art. 769 da CLT.

Por outro lado, não é sequer razoável dizer que os arts. 15 do CPC/2015 e 769 da CLT seriam incompatíveis. Antes, eles possuem iniludível potencial dialógico, sendo capazes de coexistirem na perspectiva do mútuo adensamento das suas signii cações jurídicas, devendo ser descartado, justamente por isso, eventual posicionamento de que o novo preceptivo esgotaria a matéria tratada no antigo.

Sem que se parta desde já para argumentações mais soi sticadas, há de se constatar que o art. 15 do CPC/2015 é um regramento geral, previsto para a colmatação de lacunas dos processos eleitorais, trabalhistas e administrativos, ao passo o art. 769 da CLT é um ditame especial do Processo do Trabalho. Só isso basta para se ter a certeza de que, nos termos do art. 2º, § 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a disposição nova (art. 15 do CPC/2015) não revoga nem modii ca a disposição anterior (art. 769 da CLT).

3. Os arts 769 da CLT e 15 do CPC/2015 na perspetiva jurídica do diálogo das fontes

Como visto anteriormente, ainda que encarado o problema do convívio entre os arts. 769 da CLT e 15 do CPC/2015 pelos esquadros da modernidade jurídica, não se revela defensável o posicionamento de que o primeiro revogaria o segundo. Muito menos correto se mostra tal pensamento quando a aparente antinomia é pensada na perspectiva pós-moderna do diálogo das fontes.

Vale esclarecer que o método do diálogo das fontes foi originalmente construído na Alemanha pelo professor Herik Jayme (Universidade de Heidelberg), tendo sido introduzido no Brasil pelo magistério de Claudia Lima Marques (UFRGS) e desenvolvido no nosso país, entre outros, pelo professor Valerio de Oliveira Mazzuoli (UFMT), podendo ser sintetizado (se isto é possível) nos termos que adiante seguem, por via das palavras de Claudia Lima Marques:

"A bela expressão do mestre de Heidelberg é semiótica e autoexplicativa: di-a-lo-gos, duas ‘lógicas’, duas ‘leis’ a seguir e a coordenar um só encontro no ‘a’, uma ‘coerência’ necessariamente ‘a restaurar’ os valores deste sistema, desta ‘nov-a’ ordem das fontes, em que uma não mais ‘re-vo-ga’ a outra (o que seria um mono-logo, pois só uma lei ‘fala’), e, sim, dialogam ambas as fontes, em uma aplicação conjunta e harmoniosa guiada pelos valores constitucionais e, hoje, em especial, pela luz dos direitos humanos. (...)

Em seu Curso Geral de Haia de 1995, Erik Jayme ensinava que diante do ‘pluralismo pós-moderno’ de fontes legislativas, a necessidade de coordenação entre as leis no mesmo ordenamento jurídico é exigência de um sistema ei ciente e justo. A expressão usada antigamente era a de conflitos de leis no tempo, ou direito intertemporal, a signii car que, como havia ‘colisão’ entre os campos de aplicação dessas leis, por exemplo, uma lei anterior de 1990, como o Código de Defesa do Consumidor, ou de 2002, como o novo Código Civil brasileiro e uma posterior, como a lei sobre consórcio, a solução do ‘conl ito’ seria a prevalência de uma e a consequente exclusão (ab-rogação, derrogação, revogação) da outra ou outras do sistema.

Nesta visão ‘perfeita’ e ‘moderna’ teríamos a ‘tese’ (lei antiga), a ‘antítese’ (lei nova) e a ‘síntese’ (revogação), a trazer clareza e certeza ao sistema. Os critérios para resolver

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os conflitos de leis no tempo seriam três: anterioridade, especialidade e hierarquia, a priorizar-se a hierarquia. Erik Jayme alerta, porém, que os tempos pós-modernos não mais permitem este tipo de clareza e ‘monossolução’, sequer a hierarquia dessas leis é clara, mas apenas dos valores constitucionais. Nestes novos tempos, a superação de paradigmas é substituída pela convivência dos paradigmas, a revogação expressa pela incerteza da revogação tácita e por fim pela convivência de leis com campo de aplicação diferentes, mas convergentes, em um mesmo sistema jurídico, plural, fluido, mutável e complexo. O grande mestre de Heidelber propõe então uma segunda solução, a coordenação dessas fontes: da retirada do sistema (revogação) ou ‘monólogo’ de uma norma só à convivência das normas, ao ‘diálogo das fontes’.

Como afirmei, ‘diálogo’ em virtude das inl uências recíprocas, ‘diálogo’ porque há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes pela fonte prevalente (especialmente em matéria de convenções internacionais e leis modelos) ou mesmo a opção por uma solução flexível e aberta, de interpenetração, ou a solução mais favorável ao mais fraco da relação."1

Atualmente, é mais que evidente que as relações sociais são complexas e até mesmo caóticas, não podendo ser explicadas e simplii cadas esquematicamente. Muito ao contrário, a dinâmica da vida em sociedade é altamente intrincada, exigindo perspicácia e rei namento daqueles que buscam compreendê-la mini-mamente. Vale dizer que as soluções para os dissensos demandam construções cada vez mais requintadas, criteriosamente elaboradas com o maior número possível de informações e variáveis.

O universo jurídico, naturalmente, não poderia passar imune a tamanha dinamização. Nesta perspectiva, não há como deixar de dizer que, no caso brasileiro, a Lei de Introdução, construída à sombra do positivismo estrito, já não consegue dar resposta adequada aos impasses normativos. Pensar as antinomias, tantos as reais quanto as aparentes, pelos critérios estreitos do seu art. 2º, é o mesmo que emprestar soluções analógicas a problemas digitais.

Abre-se lugar contemporaneamente ao método do diálogo das fontes que, ao rechaçar o monó-logo legislativo, propicia a aplicação conjunta de duas ou mais normas que se ressignii cam mutuamente à luz dos direitos humanos, sem que isso necessariamente subtraia a coerência jurídica sistêmica e a integridade do direito.

Não há como negar, neste contexto, que a combinação dialógica dos arts. 769 da CLT e 15 do CPC/2015 (e de outras disposições e microssistemas processuais, como adiante se verá), pensados ao encontro e não de encontro, realizada com cuidado e método científico, pode potencializar a instrumentalidade do Processo do Trabalho, sem...

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