Os processos de politização

AutorJacques Lagroye
Páginas18-35
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2017v16n37p18
18 18 – 35
Os processos de politização1
Jacques Lagroye2
Resumo
O artigo discute os processos de politização do espaço social como fenômeno central da cons-
trução de uma ordem política no Ocidente, a qual implicou o surgimento de diferentes esferas de
atividades especializadas que historicamente se diferenciaram e se institucionalizaram. A análise
demonstra diversas formas pelas quais outras esferas sociais são requalif‌icadas em termos polí-
ticos por certos atores, em um processo de transgressão e mistura entre campos ou setores da
sociedade, o qual também tem efeitos importantes sobre a ordem política e suas instituições. Por
aparecer como transgressão da diferenciação fundamental dessas ordens, ou espaços de ativida-
des, e das categorias que permitem classif‌icá-los, a politização suscita um intenso trabalho de
legitimação, que exige a convergência possível dos objetivos de atores que, no entanto, incarnam
papéis diferenciados.
Palavras-chave: Politização. Produção social da política. Legitimação.
De qualquer maneira que a compreendamos, a “politização” de atividades
sociais, de grupos, de temas ou de prossões coloca um problema de legitimi-
dade e é objeto de apreciações morais. Paradoxalmente, aqueles que a deplo-
ram estão entre os primeiros a denunciar, em certas circunstâncias, a “despoli-
tização”, uma e outra noção designando de seu ponto de vista uma “perversão
da democracia”, “do político” tal como eles o sonham; a ponto de chegarmos
a nos perguntar se não haveria, segundo o caso, uma “boa” e uma “má” politi-
zação [...]. O que ocorreu entre os dois turnos da eleição presidencial de 2002
na França pode servir de ponto de partida à reexão. As interpretações dos
resultados do primeiro turno3 se inscrevem quase todas em um esquema ge-
ral que mobiliza as categorias habituais do entendimento politológico. Além
1 Texto publicado originalmente em Lagroye, J. (Dir.). La politisation. Paris: Belin, 2003, p. 359-372. Tradução
de Ernesto Seidl.
2 Jacques Lagroye (1936-2009) foi fundador e diretor do Centre de Recherches de la Politique de la Sorbonne
(CRPS), Université de Paris I.
3 Para a análise desse momento fortemente dramatizado da vida política, utilizamos aqui a imprensa diária (Le
Figaro, Le Monde, Libération, jornais do interior) e as gravações dos telejornais de “France 2”.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 16 - Nº 37 - Set./Dez. de 2017
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dos efeitos supostos da “coabitação” e de uma midiatização (calculada?) de
algumas manifestações alarmantes da insegurança, as “surpresas” espetaculares
desta eleição4 são atribuídas de modo confuso à despolitização dos franceses
abstencionistas, à irresponsabilidade daqueles eleitores que não “entenderam
a questão em jogo desse primeiro turno, e à perversão “da política” por eleitos
cujo comportamento pôde ter enojado os cidadãos com os jogos tornados esté-
reis – e imorais – da atividade política5. Esse esquema, incansavelmente usado
pelos homens políticos, jornalistas, politólogos e diversos dirigentes associati-
vos6, retoma e amplica – no estilo “nós bem que avisamos” – o quadro geral
de interpretação proposto pelos mesmos antes do primeiro turno: é vericado
“o divórcio entre as expectativas políticas dos franceses e as práticas políticas
dos candidatos”7; é conrmado que “[...] os franceses não rejeitam a política,
mas os temas, o espetáculo, os hábitos do pessoal político” (PERRINEAU,
2007). Divina surpresa, o “sobressalto republicano” entre os dois turnos, dra-
maticamente encenado com suas manifestações de massa, suas autocríticas
públicas e suas conversões – “eu vejo, eu sei, eu acredito, eu estou desencan-
tado” [...] –, torna-se o signo de uma redescoberta massiva do político (se não
da política, para muitos ainda suspeita), de uma benéca repolitização “dos
franceses”. O “choque” do 21 de abril “repentinamente recolocou a política
no centro das preocupações” (WENZDUMAS, 2002)8; a “revolta cívica da
juventude” prova que “[...] a ascensão da extrema-direita provoca uma tomada
de consciência política nas jovens gerações”9; este “levante em massa” é “o sinal
de uma renovação democrática [...] a surpresa Le Pen despertou a democra-
cia, a participação, a iniciativa e a militância”10; um “grande ímpeto cidadão
[...] ultrapassou em muito as reivindicações sindicais para desembocar, alegre,
4 A qualif‌icação de J.-M. Le Pen, sem dúvida, mas também a baixa mobilização eleitoral, os escores medíocres
dos candidatos “pré-selecionados” para o 2º turno (pela imprensa, círculos políticos, comentaristas especia-
lizados e institutos de pesquisa de opinião), a importância do voto nos candidatos de extrema esquerda e a
“dispersão dos sufrágios”.
5 Quanto aos numerosos eleitores de J.-M. Le Pen, eles são ora apresentados como “culpados” por uma escolha
consciente, fascizante e racista, ora como irresponsáveis por um voto que resultaria mecanicamente de sua
posição social e dos sofrimentos que ela engendra. Interpretações nuançadas e isentas dessa contradição,
como a proposta por Colette Ysmal no Le Figaro de 23 de abril de 2002, são raras.
6 Claro que há exceções!
7 Extraído de Libération, de 19 de abril de 2002.
8 Trecho de Libération de 30 de abril de 2002.
9 Título da capa do Le Monde, 30 de abril de 2002.
10 Serge July, extraído do Libération de 2 de maio de 2002.

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