Cédula de produto rural (CPR): recuperação de crédito no agronegócio

AutorRenato M. Buranello - Ana Silvia Neves Comodo Barbosa
Páginas245-262

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1. O processo civil de resultados

O ordenamento jurídico ligado ao sistema de mercado há de se prestar à defesa do crédito e, portanto, a mecânica dos contratos empresariais deve incorporar esse pressuposto. Como assinala Pajardi, a credibilidade dos ordenamentos jurídicos modernos, no que diz respeito ao direito material e ainda mais à eficiência da jurisdição, postula um processo estritamente eficaz e está ligada à capacidade concreta de tutela do crédito.1 Por isso, Clóvis do Couto e Silva inicia sua obra A Obrigação como Processo, assegurando que "a relação obri-gacional se encadeia e se desdobra em di-reção ao adimplemento, à satisfação dos interesses do credor".2

Importa, atualmente, estudar e compreender o direito processual civil a partir de uma visão multidisciplinar, certo de que o processo nada mais é do que instrumento de realização do direito material e que, por isso mesmo, não tem sentido estudá-lo sem a compreensão adequada do próprio conflito de interesses a ser solucionado a partir do direito material. Os dois diferentes planos, o "material" e o "processual", devem ser levados em conta para a perfeita compreensão do fenômeno processual e, entre outras questões, a clara identificação de sua finalidade. O direito processual civil, não obstante tenha identificação, função e natureza próprias, serve, atende e volta-se para aplicação concreta do direito material: o direito processual realiza o direito material.

O Código Civil de 2002, com poucos anos de vigência, é colocado sob análise nesse momento, devendo ser contextuali-zado na atual ordem jurídica. Os três princípios fundamentais que regem o Diploma Civil são eticidade, baseado na probidade e boa-fé (arts. 113, 187 e 422); socialidade, com o predomínio do social sobre o individual (arts. 421, 1.228, §§ 4o e 5o, 1.240, 1.241) e operabilidade, visando à facilita-ção da interpretação da lei pelo operador do Direito (arts. 189 e segmentos, 720, §§ 5o, e 1.240). O legislador não consegue prever e positivar todos os casos e situações próprias possíveis de ocorrer no futuro, daí cabe ao operador do Direito a ativi-

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dade, de interpretação, da hermenêutica jurídica. A aplicação da norma, no caso concreto, é feita com a valoração de certos elementos pelo juiz, cujos poderes foram dispostos pelo Código Civil vigente.

Podemos dizer que o exercício da jurisdição está enraizado na convicção do juiz, tanto na sua consciência jurídica formal e material, quanto seus pontos de vista racionais. Trata-se de uma interpretação construtiva, a qual deve ser simultaneamente, conhecimento, valoração e ativida-de. Assim a interpretação diretiva da lei, deve ser à luz dos conflitos existentes nas relações jurídicas materiais e das exigências sociais postas.3 Pensando no processo civil de resultados, o estudo sobre a efeti-vidade no processo civil, amplia a concepção não somente do resultado do processo, mas também dos instrumentos processuais postos à disposição das partes na busca do resultado pretendido. Como condutor das relações econômicas que necessitam de tutela o processo deve ser aberto e flexível às mudanças engendradas pelo ordenamento. A consecução de um processo que possa dar ajusta tutela necessária ao direito material subjacente.

Reconhecer a existência de uma tutela do processo é também reconhecer que existe uma tutela dos sujeitos que integram a relação jurídica processual, em outras palavras, uma tutela dos direitos ou posições jurídicas decorrentes de uma relação econômica de mercado. Quando se cogita dos instrumentos para efetivação de interesses materiais, por vezes se está pensando nos próprios efeitos substanciais que o processo deve ser apto a realizar; por outras vezes, porém, se está pensando nos meios hábeis para conduzir a tais resultados, isto é, no instrumento.4 O exercício da função ju-risdicional visa à formulação e à atuação prática da norma jurídica concreta que deve disciplinar determinada situação. Ao primeiro aspecto dessa atividade (formulação da norma jurídica concreta) corresponde, segundo terminologia tradicional, o processo de conhecimento ou de cognição, do segundo aspecto (atuação prática da norma jurídica concreta), o processo de execução.

Quanto à natureza da providência jurisdicional, as ações classificam-se em ação de conhecimento, executiva e caute-lar. A atividade jurisdicional de conhecimento é essencialmente declaratória. A de execução é satisfativa; tem por finalidade um resultado material, na efetivação dos direitos do credor. Na ação de conhecimento, busca-se a tutela jurisdicional consubstanciada em uma decisão de mérito (sentença). Na ação de execução, busca-se outra espécie de tutela, que é a efetivação de atos materiais tendentes à satisfação do direito do credor. No processo de execução, o título executivo força o órgão jurisdicional a exercer sua atividade, sem lhe deixar liberdade alguma de apreciação nem quanto ao fato, nem quanto ao direito. O juízo, colocado perante o título executivo, desde que se assegure de que o título satisfaz aos requisitos exigidos pela lei para ter eficácia executiva, nada mais precisa averiguar, nem pode averiguar: tem de proceder, tem de pôr à mercê do exequente os meios executivos.

Em face do axioma nula executio sine titulo, é inafastável que se analisem os atributos, ou requisitos, do título executivo, que são a certeza, liquidez e exigibilidade. Sem o título, pelo contido nos arts. 586 e 618,I, do Código de Processo Civil (CPC), a execução é nula. Tais requisitos também estão previstos no art. 474 do Código italiano. A certeza do título liga-se à sua existência. É certo quando, em face do título, ao prisma formal do documento, não há controvérsia sobre sua existência (do título).5 Ainda que a lei se reporte à necessi-

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dade de crédito certo (art. 586, CPC), basta a qualificação de um título executivo, evidentemente preenchidos os requisitos legais, em que está inerente esse juízo de valor acerca da probabilidade da existência daquele, para que se dê a adequação da ação de execução.

Pode-se depreender que o título é líquido quando contém a determinação da importância da prestação (quantum). Como regra, o requisito da liquidez refere-se apenas aos direitos e obrigações que tenham por objeto coisas fungíveis, como é o caso dos créditos em dinheiro e o das obrigações de dar coisa determinada pelo gênero e quantidade (art. 629, CPC). É liquida a dívida quando a importância se acha determinada em todos os seus elementos de quantidade (dinheiro), qualidade, natureza, peso, volume, espécie e quantidade (coisas diversas do dinheiro). Nas obrigações de dar, a liquidez tem a ver com a individualização do objeto devido ("o que se deve"), com a qual se completará a individualização do direito e de seu objeto. O valor do título, para cumprir o requisito da liquidez, não precisa necessariamente estar declinado em moeda corrente nacional. É suficiente que a quantia seja determinável, isto é, que contenha os indicativos suficientes para que, mediante simples operação aritmética chegue-se ao valor correspondente.

Conquanto o art. 586 do CPC aluda à liquidez, certeza e exigibilidade, é certo que esta última é estranha ao conceito e configuração do título executivo. É dizer, a exigibilidade não é elemento intrínseco do título executivo, como o são a liquidez e a certeza. A exigibilidade concerne à necessidade concreta da jurisdição; o título executivo, à adequação da via procedimental. Conjugados esses dois elementos - necessidade e adequação - detectamos o interesse processual no processo de execução. A exigibilidade refere-se ao vencimento da dívida. Se a obrigação alcançou o termo ou se verificou a condição a cuja ocorrência a eficácia do negócio jurídico estava condicionada, é exigível, porque já está vencida (art. 572, CPC; art. 397, CC). Em suma, a exigibilidade refere-se ao momento a partir do qual o credor pode exigir o pagamento.

Assim, ainda que o direito processual civil tenha identificação, função, natureza

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e regras próprias destina-se à aplicação concreta do direito material, não sendo um fim em si mesmo, mas sim, meio; trata-se, portanto, de instrumento de realização na concretização dos interesses do credor. Nesta medida, partindo do pressuposto de que o direito processual civil deve servisto como instrumento de realização do direito material e de defesa do crédito é que analisaremos a efetividade processual da Cédula de Produto Rural (CPR), base do que chamamos de Sistema Privado de Financiamento do Agronegócio.

2. Nova ordem no financiamento do agronegócio

Uma nova perspectiva para a agroin-dústria está apontada para esse milênio. Nos últimos 50 anos, o número de pessoas no mundo dobrou e a oferta de produtos agrícolas acompanhou o ritmo de crescimento da demanda. Entretanto, acreditamos que a expansão econômica e populacional continuará levando preocupação às nações no mundo todo. Com inúmeros produtos de alta demanda, o Brasil dispõe de competência suficiente para integrar-se ao comércio internacional de alimentos e fibras, igualando níveis mundiais de investimento e tecnologia. A atual abordagem da crise de alimentos desconhece as vantagens do agronegócio brasileiro, que possui recursos naturais inigualáveis, modernas cadeias agroindustriais e firme participação do mercado financeiro. Sabemos que há 1 bilhão de famintos no planeta, e a população mundial vai ganhar mais 2,2 bilhões de pessoas nas próximas décadas. A boa notícia é que, está ao nosso alcance produzir alimentos para tanta gente e, ao mesmo tempo, preservar o meio ambiente.6 Para isso, precisamos de uma revolução agroambiental e planejamento estratégico do agronegócio.7

A visão predominante é a de que há em andamento uma...

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