A proibição de bis in idem e a tributação

AutorFabio Brun Goldschimidt
Ocupação do AutorDoutor em Derechos y Garantías del Contribuyente pela Universidade de Salamanca e Mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo
Páginas51-296
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Capítulo II
A PROIBIÇÃO DE BIS IN IDEM
E A TRIBUTAÇÃO
Seção I
Proibição de Bis in Idem e
Direito Tributário Material
1. Existe uma proibição geral de Bis in Idem no Direito
Tributário brasileiro?
Essa é a primeira questão que devemos suscitar antes de
evoluirmos no presente estudo. Para muitos, tal dúvida pode
parecer inusitada, já que mesmo leigos em matéria jurídica
estão acostumados a ouvir falar da proibição de bis in idem,
como algo natural, invocável em qualquer circunstância. Aliás,
mesmo na imprensa é comum identificarmos matérias que,
com o intuito de desqualificar determinada exigência, aludem
à mesma como um “bis in idem odioso”.
Mas é possível, falar-se, tecnicamente, em uma proibição
geral de bis in idem no Direito Tributário Material Brasileiro?
Desde já, permitimo-nos responder: não em termos amplos,
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FABIO BRUN GOLDSCHMIDT
irrestritos. Apenas em termos. A proibição de bis in idem cer-
tamente não possui a aplicabilidade geral e incondicional que
determinados profissionais do Direito pretendem lhe dar.
Tampouco pode sua aplicabilidade ser simplesmente negada,
incondicionalmente, no contexto do Direito Tributário, como
se tratasse de corpo estranho a tal seara jurídica.
Para melhor esclarecer a questão, cumpre traçar e reto-
mar algumas distinções. E a primeira delas diz respeito ao
plano – abstrato ou concreto – objeto da investigação que se
pretende empreender.
Isso porque, no plano concreto, factual (atinente à cons-
trução da norma individual e concreta pelo operador do Direi-
to, mediante a atividade de lançamento), ninguém ousará dizer
que a máxima não tem aplicação. É elementar que, v.g., um
tributo exigido pelo Fisco e quitado pelo contribuinte não pode
ser novamente cobrado. Aliás, trata-se da mera aplicação da
regra segundo a qual o pagamento extingue a obrigação tribu-
tária. Elementar também que a realização de um único fato
gerador não pode dar margem a um duplo ou múltiplo lança-
mento tributário. A realização concreta da hipótese de incidên-
cia admite uma única constituição do crédito pelo Fisco, que
corresponde e esgota aquele evento, com interdição ao bis.
Ainda assim, certo é que as possibilidades de invocação
da proibição de bis in idem dentro dessa que denominamos
perspectiva concreta da proibição de bis in idem são inúmeras
e a perfeita delimitação de tais hipóteses é campo fértil para a
construção doutrinária, como se verá a seguir.64 65
64. Como ocorre no retro citado exemplo relativo à cobrança do ISSQN
(Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza) quando o serviço é prestado
fora da cidade/sede da prestadora, situação em que ambas municipalidades
costumam sustentar o seu direito à constituição do crédito tributário, acar-
retando a exigência repetida do tributo, em que pese se esteja diante de um
único fato gerador.
65. Pedro Soares Martínez, em sintonia com nosso pensamento, bem evidencia
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TEORIA DA PROIBIÇÃO DE BIS IN IDEM NO DIREITO TRIBUTÁRIO
No plano normativo/abstrato (que denominamos pers-
pectiva abstrata da proibição de bis in idem), contudo, a invo-
cação da proibição é bem mais delicada. Em primeiro lugar
porque inexiste, na Constituição brasileira, uma vedação ampla
à instituição de dois ou mais tributos idênticos. Há proibições
pontuais, sem dúvida, mas não uma regra geral. Aliás, o siste-
ma brasileiro é pródigo em exemplos de tributos idênticos em
sua essência (estamos nos referindo à hipótese de incidência
e base de cálculo como elementos definidores da identidade)
cuja instituição e cobrança se entende absolutamente regular,
como v.g. o PIS e a COFINS, o Imposto de Renda e a Contri-
buição Social sobre o Lucro Líquido.66
que da soberania não se pode inferir a afirmação de que os poderes fiscais
do Estado são ilimitados: “Os poderes fiscais do Estado, mesmo os poderes
soberanos, acham-se limitados, não apenas de facto mas também de Direito.
E a primeira limitação decorre dos próprios fins do Estado e das vantagens
que advêm da sua prossecução. O Estado não pode criar impostos para sa-
tisfazer fins que não sejam os seus próprios nem para fazer face a despesas
que não se traduzam em vantagens para a respectiva comunidade. Sem dú-
vida que essas vantagens têm de ser apreciadas à face de critérios políticos.
Mas, definidos estes, com eles terá de conformar-se o poder estadual; e terá,
consequentemente, de admitir, à mesma luz, cerceamentos à sua capacidade
de exigir impostos.” (MARTÍNEZ, Pedro Soares. Manual de Direito Fiscal.
Coimbra: Livraria Almedina, 1983, p. 77-78).
66. Levando ao extremo essa afirmação, Berliri afirma que as possibilidades
de imposição pelo Poder Legislativo são “teoricamente ilimitadas”, por cons-
tituir um aspecto de sua soberania. O autor, contudo, apresenta alguns exem-
plos que, atualmente, já não seriam compatíveis com a noção de capacidade
contributiva: “Dado que su poder legislativo es teóricamente ilimitado, es
evidente que el Estado puede establecer cualquier impuesto y que, por tanto,
con respecto al mismo la potestad tributaria constituye un simple aspecto de
su soberanía. Por consiguiente nada impide, en teoría, que el Estado conecte
el nacimiento de un impuesto, en vez de a un hecho económico (posesión de
un patrimonio, percepción de una renda, etc.), a un hecho físico (nacimiento
o muerte de un individuo), a un acto jurídico (venta, préstamo, interdicción,
inhabilitación, etc.) o a una determinada cualidad del sujeto pasivo (estado
civil, raza, etcétera). Las consideraciones que inducen al legislador a deci-
dirse por una u otra solución pueden ser muy distintas, según la función
que aquél atribuya al impuesto y el momento político y económico en el que
éste se establezca. Y la historia confirma de lleno tal afirmación al mostrar

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