Proibição, pelo empregador, de relacionamentos amorosos entre empregados e limites ao exercício do poder empregatício: a eficácia horizontal dos direitos fundamentais à intimidade, vida privada, liberdade e dignidade da pessoa humana

AutorJosé Roberto Freire Pimenta e Raquel Betty de Castro Pimenta
Páginas233-239

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1. Introdução

Nos últimos anos, a Justiça do Trabalho tem julgado reclamações em que se discute a possibilidade de instituição, por parte dos empregadores, de limites a relacionamentos amorosos entre empregados, dentro e fora do local de trabalho, como desdobramento do seu poder empregatício.

Algumas empresas têm instituído verbalmente ou inserido em seus regulamentos normas proibindo, de forma absoluta, relacionamentos amorosos entre seus empregados, dentro e fora dos seus estabelecimentos. Os empregados que violam referidas normas sofrem penalidades pelo descumprimento de tais proibições, tendo, inclusive, seus contratos rescindidos por justa causa.

Tal conduta empresarial viola os direitos fundamentais dos trabalhadores à intimidade, à vida privada, à liberdade e à dignidade da pessoa humana, consoante o reiterado entendimento do Tribunal Superior do Trabalho adotado nos julgamentos proferidos nos autos dos Processos RR-60700-44.2008.5.04.0221 (Relatora Juíza Convocada: Maria Doralice Novaes, Data de julgamento: 12/5/2010, 7ª Turma, Data de publicação: DEJT 21.5.2010), AIRR-121000-92.2009.5.04.0008 (Relatora Ministra: Rosa Maria Weber, Data de julgamento: 28.9.2011, 3ª Turma, Data de publicação: DEJT 7.10.2011) e RR-122600-60.2009.5.04.0005 (Redator designado Ministro José Roberto Freire Pimenta, Data de julgamento: 11.6.2014, 2ª Turma, Data de publicação: DEJT 08.08.20141).

Neste último caso, discutiu-se a configuração do dano moral decorrente de despedida sem justa causa do reclamante e de sua colega de trabalho com a qual passou a conviver em união estável, mas, em verdade, e comprovadamente em decorrência do descumprimento, por ambos, de norma regulamentar interna da reclamada, por ela unilateralmente editada, que proíbe qualquer forma de relacionamento amoroso entre os seus empregados (especialmente os que atuam em alguns de seus setores), não só dentro, mas também fora da empresa.

A situação fática evidenciada naqueles autos foi de que o reclamante trabalhava no supermercado da reclamada e exercia o cargo de operador de supermercado, onde passou a ter relacionamento amoroso com uma colega do mesmo estabelecimento, mas que trabalhava no seu respectivo setor de segurança ou de controle patrimonial.

Somente por isso e sem que nada mais houvesse sido alegado a respeito da conduta pessoal e profissional daqueles dois empregados, foi então aberto pela empregadora um procedimento administrativo contra ambos, com base em norma interna da empresa, apresentada pela própria demandada em anexo à sua defesa, que previa o seguinte:

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Devido às atividades e atribuições pertinentes ao Departamento de Asset Protection e suas divisões, incluindo a Divisão de Loss Prevention, nenhum associado desse departamento poderá ter relacionamento amoroso com qualquer associado da empresa ou unidade sob a qual tenha responsabilidade. (destacou-se)

Na hipótese daqueles autos, é preciso enfatizar que não houve nenhuma alegação ou registro de que o reclamante e sua colega de trabalho e companheira agiram mal, de que entraram em choque ou de que houve algum incidente envolvendo-os, no âmbito interno da própria empresa. A dispensa formalmente imotivada dos dois empregados2, que não por acaso ocorreu na mesma data, incontroversamente decorreu exclusivamente do fato de estarem morando juntos e tendo um relacionamento afetivo, e de a companheira do reclamante exercer suas atividades exatamente no anteriormente citado setor de Divisão de Loss Prevention ou de Prevenção de Perdas, certamente com base na arbitrária e irrazoável presunção, apenas implicitamente sugerida e jamais verbalizada, de que ela, em relação ao reclamante, poderia não agir corretamente, no exercício de suas funções na área de segurança do supermercado.

Na referida decisão da Segunda Turma do TST, tais fatos, evidenciados no caso concreto analisado, foram considerados, sim, invasão injustificável da intimidade e do patrimônio moral de cada um dos empregados envolvidos nesse lamentável episódio e intolerável ofensa à sua dignidade e à sua liber-dade individual, os quais, ao se tornarem empregados, não deixaram de ser pessoas e não poderiam ter sido proibidos, do modo absoluto estabelecido pela norma regulamentar em referência, de se relacionar amorosamente, mesmo que fora de seu ambiente de trabalho, com seus colegas.

Diante desse contexto fático, o Tribunal Superior do Trabalho entendeu ser indiscutível que preceitos constitucionais fundamentais foram gravemente atingidos de forma generalizada por essa conduta empresarial, como a dignidade da pessoa humana e a liberdade, tendo em vista que a vida pessoal de todos os seus empregados, inclusive a do reclamante daqueles autos, estava sendo ilícita e abusivamente limitada pela empregadora fora do ambiente de trabalho.

Situações como esta aqui descrita, e como as outras nos demais casos que trataram de casos semelhantes, suscitam, antes de mais nada, a questão de se determinar se é ou não possível a pleiteada intervenção do Poder Judiciário no âmbito da organização interna das empresas reclamadas para, controlando a conformidade ou não de suas normas regulamentares que disciplinam a conduta de seus próprios empregados tanto no interior do empreendimento quanto em sua vida privada com as normas constitucionais e legais em vigor (e igualmente aplicáveis a ambos os polos dessas relações de emprego), resguardar e tutelar o pleno e efetivo exercício dos direitos fundamentais desses empregados, sem quaisquer limitações abusivas e injustificadas por parte de seu empregador.

O presente trabalho analisa, portanto, os fundamentos utilizados pelo Tribunal Superior do Trabalho nestas ações, em que foi reconhecida a eficácia horizontal dos direitos fundamentais dos trabalhadores e a prática, em tais circunstâncias, de abuso do poder empregatício.

2. Eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações de trabalho

Os casos mencionados colocam em questão a necessidade de se dar aplicação prática, no campo trabalhista, à denominada eficácia horizontal dos direitos fundamentais ou à eficácia dos direitos fundamentais entre particulares ou nas relações de direito privado (como o são as relações trabalhistas).

Como se sabe, essa concepção, hoje já consagrada no âmbito do direito constitucional e da teoria dos direitos fundamentais, nasceu da percepção de que, embora a própria ideia de atribuir a alguns direitos a condição de direitos humanos ou fundamentais tenha se originado da necessidade de, no momento histórico da vitória do liberalismo e mediante a sua consagração, como tais, nas Constituições, atribuir-lhes uma proteção qualificada contra os atos abusivos e autoritários do Estado Absolutista então combatido, também os poderes privados podem oprimir e vulnerar, de modo igualmente absoluto e prejudicial a seus titulares, esses mesmos direitos humanos ou fundamentais, especialmente nas denominadas relações jurídicas assimétricas, nas quais uma das partes esteja sujeita a uma situação de inferioridade jurídica, econômica ou social que a torne mais vulnerável em relação à outra parte.

Nesse sentido, o i. doutrinador espanhol Juan Maria Bilbao Ubillos observa com propriedade que o direito privado "também conhece o fenômeno da autoridade, do poder, como capacidade de determinar ou condicionar, juridicamente ou de fato, as decisões dos particulares, influenciando no seu comportamento ou impondo a sua própria vontade".

Nesses casos, ainda segundo esse constitucionalista espanhol, a eficácia dos direitos fundamentais entre os particulares é de extrema relevância, por se tratar de situações em que é patente a sujeição de uma das partes, a qual não dispõe da mínima liberdade de contratar ou de eleger as cláusulas do negócio jurídico e, muito menos, de exigir o seu cumprimento. Em seguida, esse autor acrescenta que "é evidente, por exemplo, que o estado de dependência econômica do assalariado lhe obriga muitas das vezes a aceitar condições impostas pelo empregador no contrato individual de trabalho"3.

Exatamente no mesmo diapasão se manifesta o consagrado constitucionalista Daniel Sarmento, observando que, em certos domínios normativos que têm como premissa a desigualdade fática entre as partes, tal como ocorre no Direito do Trabalho, "a vinculação aos direitos fundamentais deve

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mostrar-se especialmente enérgica, enquanto a argumentação ligada à autonomia da vontade dos contratantes assume um peso inferior"4.

Também para a saudosa Professora e Desembargadora do TRT-3ª Região Alice Monteiro de Barros, a assimétrica situação de poder contratual inerente à relação laboral serviu não só para "desativar o fundamento teórico do dogma da autonomia da vontade, como também contribuiu para a reconstrução da tradicional dogmática dos direitos fundamentais", estendendo sua vinculação aos particulares, pouco importando se...

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