A Proposta de Emenda à Constituição n. 287/2016 e o Risco de Desproteção Social

AutorCarlos Alberto Pereira de Castro
Páginas28-45

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1. Introdução - (mais uma) reforma inconstitucional?

O Governo Federal, sob o argumento de que há necessidade de ajustes nas contas públicas, incluídas aí as despesas com benefícios da Previdência Social, tanto do Regime Geral como dos Regimes Próprios, e ainda, os benefícios da Assistência Social, apresentou, no dia 06.12.2016, uma Proposta de Emenda à Constituição, que levou o número 287/2016 e atualmente tramita nas casas do Poder Legislativo – que detém, na ordem constitucional brasileira, o Poder Constituinte Derivado.

O intuito manifesto da PEC, segundo sua Exposição de Motivos – assinada pelo Ministro da Fazenda, Henri-que Meirelles, é “fortalecer a sustentabilidade do sistema de seguridade social, por meio do aperfeiçoamento de suas regras, notadamente no que se refere aos benefícios previdenciários e assistenciais”, é dizer, em quase nada se referindo a questões relacionadas ao custeio – salvo quanto às contribuições dos segurados do meio rural.

Declara o Governo, no texto da Exposição, assinado pelo atual Ministro da Fazenda, ser o conjunto de medidas “indispensável e urgente, para que possam ser implantadas de forma gradual e garantam o equilíbrio e a sustentabilidade do sistema para as presentes e futuras gerações”.

A PEC alerta para questões de natureza demográfica, já que “a expectativa de sobrevida da população com 65 anos, que era de 12 anos em 1980, aumentou para 18,4 anos em 2015”. Nesse sentido, sustenta o Governo que “a idade mínima de aposentadoria no Brasil já deveria ter sido atualizada”.

Ainda a esse respeito, alude o texto da PEC à evolução demográfica brasileira, calculada pelo IBGE, que “aponta para uma maior quantidade de beneficiários do sistema, recebendo benefícios por maior período de tempo, em contraponto com menor quantidade de pessoas em idade contributiva, tornando imprescindível a readequação do sistema de Previdência Social para garantir seu equilíbrio e, consequentemente, a sua sustentabilidade no médio e longo prazo”.

Além de tais aspectos demográficos, o texto aponta “distorções e inconsistências do atual modelo”, na ótica do Governo: “regras para concessão e financiamento dos benefícios rurais; readequação dos benefícios assistenciais; a persistência de regimes específicos para algumas categorias; e a disparidade das regras que regem o RGPS e o RPPS”.

O único ponto relativo ao custeio envolve a contribuição do segurado especial, propondo-se “instituir uma cobrança individual mínima e periódica para o segurado especial, substituindo o modelo de recolhimento previdenciário sobre o resultado da comercialização da produção”. Propõe-se “a adoção de uma alíquota favorecida sobre o salário mínimo, adequada à realidade econômica e social do trabalhador rural”.

De plano, os estudiosos do Direito, especialmente do Direito Previdenciário, se veem novamente diante da tentativa de atentados a Direitos e Garantias Individuais, cláusulas pétreas conforme a Constituição de 1988, na forma do inciso IV do art. 60, na medida em que tanto em seu conjunto como em suas disposições, isoladamente, apresentam evidente retrocesso social – exceção feita à alteração proposta no art. 109, que leva a competência para as ações que envolvem benefícios de natureza acidentária para a Justiça Federal, retirando-as da Justiça Estadual.

Há, na proposta, evidente atingimento da própria estrutura do Estado de Bem-Estar Social, como veremos a seguir.

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2. O ataque ao estado de bem-estar social prometido em 1988

O Estado Democrático de Direito que a Constituição de 1988 reconhece como existente, tem entre seus objetivos a promoção do bem-estar de todos e a redução das desigualdades sociais – em síntese, estaria direcionado – no sentido de Constituição-dirigente de que nos fala Canotilho1 – à realização da Justiça Social, o que apesar de se caracterizar como um grande desafio, não pode ser abandonado pelos poderes constituídos.2

Ferrajoli,3 ao identificar a crise “profunda e crescente” do Direito, formula de modo esquemático três aspectos desta, e que se apresentam como elementos integrantes do momento atual por que passa a nação brasileira.

O primeiro, relacionado à crise de legalidade dos poderes constituídos, está fortemente identificado com a “fenomenología de la ilegalidade del poder”. Tal como se observa aqui, aponta o jurista italiano que em seu país: numerosas investigaciones han sacado a la luz un gigantesco sistema de corrupción que envuelve a la política, la administración pública, las finanzas y la economía, y que se ha desarrollado como una especie de Estado paralelo, desplazado a sedes extra-legales y extra-institucionales, gestionado por las burocracias de los partidos y por los lobbies de los negocios, que tiene sus propios códigos de comportamiento.4

Em segundo lugar, indica Ferrajoli a inadequação estrutural das formas de Estado de Direito às funções do Welfare State. Frisa o autor que tal problema é associado à contradição entre o paradigma clássico do Estado de Direito – como conjunto de limites e proibições impostos aos poderes públicos de forma certa, geral e abstrata, e o Estado Social, que demanda os próprios poderes constituídos quanto à satisfação de direitos mediante prestações positivas nem sempre predetermináveis de maneira geral e abstrata. Mas também aponta que:

Precisamente, el deterioro de la forma de la ley, la falta de certeza generalizada a causa de la incoherencia y la inflación normativa y, sobre todo, la falta de elaboración de un sistema de garantías de los derechos sociales equiparable, por su capacidad de regulación y de control, al sistema de las garantías tradicionalmente predispuestas para la propiedad y la libertad, representan, en efecto, no sólo un factor de ineficacia de los derechos, sino el terreno más fecundo para la corrupción y el arbitrio.5

E, por fim, Ferrajoli alude à crise dos Estados nacionais, por mudanças relativas à própria soberania estatal, fragilizada pela globalização e pelos interesses de grandes conglomerados econômicos, com repercussão direta no constitucionalismo, que fica, assim, debilitado, pois a integração internacional retirou o poder decisório dos poderes estatais:

El proceso de integración mundial, y específicamente europea, ha desplazado fuera de los confines de los Estados nacionales los centros de decisión tradicionalmente reservados a su soberanía, en materia militar, de política monetaria y políticas sociales.6

O que se nota é uma crise estrutural do Estado Democrático de Direito no Brasil, seja pela indisfarçável falta de representatividade da classe política, a partir de diversas investigações em curso, envolvendo inclusive a “compra” de medidas provisórias e outros atos normativos – a “Operação Zelotes” – seja pela própria contraposição e prevalência de interesses do capital especulativo sobre o povo que constitui esta Nação, notadamente os menos favorecidos, na medida em que, reduzindo drasticamente a proteção social prometida pelo Poder Constituinte originário em 1988, em todas as políticas sociais de redução de desigualdades – educação, saúde, assistência e previdência7 – demonstra haver uma crise que não é só

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política, ou fiscal, mas principalmente ideológica e filosófica.8

Nota-se que a PEC n. 287/2016, a exemplo das reformas anteriores, decorrentes das EC ns. 20/1998 e 41/2003, mais uma vez em nada se preocupa com questões fundamentais e cruciais para a solução de diversas anomalias e injustiças realizadas – desde sempre – à sociedade brasileira, como será visto a seguir.

3. Problemas não enfrentados pela PEC N 287
3.1. A alegação de déficit nas contas da Seguridade Social: a flagrante contradição em razão da manutenção da DRU pela EC n 93/2016

O primeiro argumento lançado pelo Governo envolve o polêmico tema do suposto déficit das contas públicas em matéria de Previdência Social.

Insiste o Sr. Ministro da Fazenda, subscritor da...

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