Propriedade intelectual e liberdade

AutorNewton Silveira e Walter Godoy dos Santos Jr.
Páginas7-24

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1. Introdução

O desenvolvimento das ciências jurídicas leva, em regra, ao distanciamento cada vez maior de seus fundamentos, de maneira que, muitas vezes, resta difícil estabelecer a relação entre as categorias de direito criadas para atender às novas realidades de mercado1 e seus princípios,2 acar-retando a perda da sistematização3 necessária à organização dos ramos da ciência do direito.

Curiosamente, diante da notória inflação legislativa e da elasticidade4 conferida

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aos novos institutos por ela criados, percebe-se que os princípios tornam-se, a cada dia, mais necessários ao manejo do ordenamento jurídico.

No campo da propriedade intelectual,5 em que é fértil a criação de novos direitos absolutos,6 discute-se, de maneira apaixonada, a tensão entre a necessidade de proteção de novos tipos de criações intelectuais e os obstáculos que uma proteção demasiada poderia trazer em desfavor dos princípios eleitos pela Constituição para presidir o sistema.

O desconforto aumenta na mesma proporção em que se torna mais frequente, por ignorância ou má-fé, a vulgarização de termos técnicos que conferem pureza e unidade conceituai à matéria.

O reflexo desse descaso é a incerteza no enquadramento dos tipos das obras protegidas pela propriedade intelectual que pode levar o aplicador da lei a pecar por excesso, ampliando a proteção de modo a criar restrições ao avanço tecnológico, ou a pecar por escassez, negando ao titular o legítimo exercício de seus direitos.7

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Nesse sentido, iluminar princípios constitucionais, resgatar lições dos grandes mestres que sistematizaram a matéria8 e fortalecer as fronteiras conceituais que separam os institutos por ela abarcados, reveste-se de fundamental importância para o fim de evitar que a propriedade intelectual se transforme numa indigesta sopa jurídica.

2. Mandamentos constitucionais

A Constituição Federal de 1988 é especialmente rica em disposições concernentes ao sistema de propriedade intelectual, bastando correr os olhos pelos incisos XXIII, XXVII, XXVIII e XXIX do art. 5° para se notar a importância atribuída pelo Constituinte ao objetivo de se alcançar o progresso social, cultural e o desenvolvimento tecnológico e económico do país.

Cumpre ressaltar, ainda, a dicção do art. 170, no sentido de que a ordem económica, fundada na valorização do trabalho9 humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência;10 V - defesa do consumidor.

Da conjugação dos dispositivos supracitados resulta, sinteticamente, que a Constituição contempla, ao lado da liberdade de iniciativa, a utilidade social, criando mecanismos de controle da atividade económica coordenada a fins sociais. Tal atitude se reflete diretamente sobre a tutela dos chamados bens imateriais resultantes da criação intelectual, limitando sua duração para o fim de harmonizá-los com o progresso técnico e cultural e a tutela do consumidor, buscando delimitar tais direitos, em especial no campo industrial.

Nesse sentido, é de se salientar que, durante a maior parte do período compreendido pelas Constituições Republicanas, houve preocupação exacerbada com a pro-teção do indivíduo contra o poder supremo do Estado, relação esta que não se mantém no texto da Constituição de 1988.

De fato, o pêndulo constitucional parece, mais do que nunca, inclinado para a

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satisfação do interesse coletivo11 e para a redução das desigualdades sociais, evoluindo doutrina e jurisprudência no sentido de aplicar o princípio da proporcionalidade para sopesar direitos e garantias fundamentais.

Nesse sentido, da perspectiva constitucional, não resta dúvida de que o absolutismo do direito de propriedade cede espaço ao relativismo do interesse social, como retratado por Louis Josserand: "As prerrogativas, mesmo as mais individuais e as mais egoísticas, são ainda produtos sociais, seja na forma, seja no fundo: seria incon-cebível que elas pudessem, ao grado de seus titulares, se livrar da marca característica original e ser empregadas para todas as necessidades, mesmo fossem elas inconciliáveis com sua filiação e com os interesses os mais urgentes, os mais certos, da comunidade que as concedeu".12

Assim, embora o sistema de proteção da propriedade intelectual continue a ser considerado o método de incentivo13 mais eficaz para se atingir o progresso técnico e cultural14 do país, nota-se que sofreu temperos e mitigações, os quais aparecem de maneira cada vez mais explícita na no£sa lei maior.

De todo modo, resta nítida a preocupação do Constituinte de 1988 no sentido de que tais direitos, talhados pela legislação infraconstitucional, sejam concedidos e exercidos com algumas limitações em favor do interesse comum, para que, de fato, sirvam como vetores do progresso e não como ferramentas para proteção de interesses egoísticos de seus titulares.15 Ao nosso

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tempo, já não se concebe, sob os auspícios da Constituição Federal, que direitos de propriedade intelectual sejam concedidos, exercidos ou interpretados em desacordo com está orientação.

Frise-se, nesse passo, que, tais balizas constitucionais vinculam o legislador ordinário, o Poder Judiciário e o titular do direito de propriedade, que deve direcionar seu exercício ao fim social definido pelo legislador originário - o desenvolvimento social, cultural, tecnológico e económico do País.16

Note-se, ainda, que na era da funcio-nalização do direito,17 importa saber como os direitos de propriedade intelectual serão utilizados de maneira a atender ao interesse de seus titulares, juntamente com o interesse coletivo. A função social, portanto, aponta para o exercício harmonioso dos direitos imateriais, que satisfaça os anseios de seus titulares e da sociedade simultaneamente.

Em síntese, cumpre deixar devidamente assentada a ideia de que a espinha dorsal do sistema de propriedade intelectual brasileiro se compõe dos princípios constitucionais acima referidos, que orientam o manejo de seus institutos, sem descuidar da unidade fundamental e da justificativa de criação de tais direitos, a rigor todos abs-tratos e artificiais, que se voltam para assegurar o progresso e existência digna a todos, conforme os ditames da justiça social.

3. Legislação ordinária - Propriedade Industrial e Direito Autoral

Por muito tempo os estudiosos do direito de autor se desinteressaram18 da propriedade industrial e vice-versa. Até porque o primeiro é tratado como matéria do Direito Civil e a propriedade industrial como do Direito Comercial. Assim, os professores de Direito Civil aproximavam o direito autoral dos direitos de personalidade e os comercialistas, via de regra, consideravam os direitos de propriedade industrial como monopólio.

Tullio Ascarelli, em seu Teoria de Ia Concurrencia y de los Bienes Inmateriales, Barcelona, Ed. Bosch, 1970, cuida, mais sistematicamente, dos limites recíprocos entre a tutela das obras literárias e artísticas e a das obras técnicas. Veja-se:

"En los inventos Ia aportación crea-dora concierne ai mundo de Ia técnica y consiste en un descubrimiento que hace

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posible el disfrute de las fuerzas de Ia naturaleza a efectos de satisfacer Ias necesida-des humanas, consiguiendo Ia solución de un problema técnico, un resultado industrial" (p. 321).

"La técnica representa, así, el dominio dei hombre sobre Ia naturaleza y desde Ia lejanísima invención de Ia rueda hasta el momento presente, el camino de Ia ci viliza-ción ha sido también un camino de Ia técnica y Ia máquina ha sido instrumento de bienestar y de libertad" (p. 487).

"Y es por eso por Io que, como se ha observado varias veces, el reconocimiento de Ia protección a toda obra dei ingenio no implica (y ciertamente no implica en nues-tro ordenamiento positivo) Ia protección de toda creación intelectual; el reconocimiento de Ia diferencia, precisamente frente ai inte-rés público, entre Ia protección de Ias obras dei ingenio y Ia de los inventos industriales, ciertamente no puede llevar a desconocer que también Ia protección de Ias obras dei ingenio tiene su justificación última en un interés público y no se situa como una exigência anterior a Ia ley" (p. 628).

"En efecto, Ia 'matéria' es ajena a Ia protección no solo cuando ha sido extraída de Ia experiência común, sino también cuando ha sido fruto personal de Ias inves-tigaciones, dei pensamiento dei autor, precisamente porque Ia creación artística no recae sobre el asunto sino sobre Ia expresión y es en esta expresión donde se manifiesta su individualidad" (p. 636).

"Desde este punto de vista se perciben conjuntamente Ias analogias y Ias diferencias con los inventos industriales (que podemos decir que conciernen ai dominio de Io útil), en los que también se dan unas creaciones intelectuales que también pro-vienen de un autor (que en tal caso llama-mos inventor) y que poseen una individualidad identificable ai margen de toda referencia a un objeto material, pêro que se concretan, precisamente, en un resultado inventivo, por Io que Ia exclusiva se proyec-ta sobre Ia utilización de dicho resultado y no sobre Ia reproducción de Ia expresión a través de Ia cual se ha formulado" (pp. 638-639).

Dados estes pressupostos doutrinários, a Lei de Direitos Autorais - LDA (Lei n. 9.610, de 1998), inovou em relação à anterior, ao dispor no § 3° do art. 7°: "No domínio das ciências, a proteção recairá sobre a forma literária ou artística, não abrangendo o seu conteúdo científico ou técnico, sem prejuízo dos direitos que protegem os demais campos da propriedade imaterial".

Ao referir-se ao domínio das ciências, a expressão compreende o campo da técnica, já que...

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