A propriedade intelectual e a proteção da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais

AutorCláudia Marins Adiers
Páginas116-142

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1. Introdução

A relevância económica, tecnológica e social da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais é inquestionável. Causa preocupação aos mais diversos segmentos da sociedade o fato de o Brasil - um país que possui mais de 20% da diversidade biológica do mundo - ainda não ter legislado sobre questões de acesso, transferência e proteção ambiental e intelectual deste capital genético, permanecendo inerte à intensa biopirataria da qual o país vem sendo vítima há vários anos.

Ilustrando tal assertiva, vê-se que no mercado de biotecnologia foram aplicados US$ 60 bilhões nos últimos dois anos em todo o mundo, sendo este, segundo investidores estrangeiros, um dos setores mais promissores para investimentos de risco, à medida que as empresas de biotecnologia enquadram-se em três regras básicas de investimento: têm grande potencial de pro-duzir empregos, riqueza e inovações tecnológicas.1

A propriedade intelectual é um importante instrumento de proteção desta riqueza, sendo abordados conceitos e princípios norteadores desta área que dizem respeito ao direito internacional. Além disso, outro tema trazido à discussão é a questão do usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre as terras por eles ocupadas e o questionamento da repartição equitativa dos frutos e riquezas destas - propriedade material - e do proveito económico obtido a partir do património intelectual e cultural indígena.

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2. Propriedade intelectual
2. 1 Propriedade

O direito natural à propriedade, de acordo com Wolgran Junqueira Ferreira,2 funda-se na natureza racional do homem, que necessita de bens de consumo, dos frutos da terra e da terra mesmo e de todos aqueles seres que servem ao homem como meio de cumprir seu fim. Como ser dotado de razão, há de se conceder necessariamente ao homem a faculdade não só de usar, como os demais animais, senão de possuir, como direito estável e perpétuo, assim as coisas que se acabam com o uso e as que, mesmo sendo usadas, não se acabam.

A propriedade,3 na linguagem jurídica - segundo De Plácido e Silva4 -, é a condição em que se encontra a coisa, que pertence, em caráter próprio e exclusivo, a determinada pessoa. E, assim, a pertinência exclusiva da coisa atribuída à pessoa.

Nossa Constituição Federal/1988, em seu art. 5-, XXII, garante o direito de propriedade. O instituto é conceituado na doutrina civil,5 sinteticamente, como a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, como o direito de usar, fruir e dispor de um bem e de reavê-lo de quem injustamente o possua. Descritivamente, trata-se de direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei.

E, em seu inciso XXIII, o art. 59 da Constituição Federal expressa o condicionamento do direito de propriedade à sua função social. Para Gilmar Ferreira Mendes6 o conceito constitucional àe proteção ao direito de propriedade7 transcende a concepção privatística estrita, abarcando outros valores de índole patrimonial; afirma que essa orientação permite que se confira proteção constitucional não só a propriedade privada em sentido estrito, mas, fundamentalmente, às demais relações de índole patrimonial. Segundo o autor a garantia constitucional de propriedade assegura uma proteção das posições privadas já configuradas, bem como dos direitos a serem eventualmente constituídos.8

2. 2 Propriedade intelectual

A propriedade ontelectual é definida pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual9 - OMPI10 como "a soma dos

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direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e às emissões de radiodifusão, às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico".11

A globalização12 cria complexidade e aumenta a interdependência do sistema jurídico em relação ao seu ambiente externo. Surgem novos temas, comportamentos inéditos, atividades económicas atípicas, agregações políticas pouco usuais, e outros eventos que carecem de regulação jurídica.13

A capacidade competitiva dos Estados, frente a este cenário mundial, está intrinsecamente ligada à evolução tecnológica, que capacita as indústrias nacionais a potencializar seus níveis de produção, agregar valor aos seus produtos, tornando-as aptas a enfrentar a acirrada concorrência do mercado internacional. Por isso, as legislações internas dos Estados que regulam a proteção dos direitos relativos à propriedade intelectual tendem ao protecionismo dos interesses desenvolvimentistas nacionais.14

O sistema internacional de proteção à propriedade intelectual é formado por uma estrutura de acordos e convenções administrados, no âmbito das Nações Unidas, pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual - OMPI e, no âmbito da Organização Mundial do Comércio,15 o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Proprieda-

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de Intelectual Relacionados ao Comércio16 -em Inglês, TRIPS.17

2.2. 1 O TRIPS e a Convenção da União de Paris

O TRIPS foi recepcionado no nosso ordenamento jurídico através do Decreto 1.355, de 30.12.1994,18 que promulga a Ata Final que incorpora os Resultados da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT. A Convenção da União de Paris - CUP foi recepcionada através do Decreto 1.263, de 10.10.1994, que ratifica a declaração de adesão aos arts. l9 a 12 e ao art. 28, alínea 1, do texto da Revisão de Estocolmo.

A grande diferença entre estes sistemas19 está no poder de sanção na área co-mercial existente no âmbito da OMC,20 visto que o TRIPS prevê mecanismos de prevenção e solução de controvérsias,21 possibilitando invocá-los a fim de legitimar retaliações contra os membros inadimplentes -mecanismo inexistente na esfera da OMPI.

O TRIPS recepciona a Convenção de Paris, estabelecendo que os membros cumprirão com o disposto nos arts. 1 a 12 e 19 da Convenção, e nada naquele contido derrogará as obrigações existentes entre os membros em virtude desta.22 Ele abrange os tipos principais de direitos da propriedade intelectual,23 estabelecendo um padrão mínimo24 de garantias e direitos,25 podendo os membros estabelecer em suas legislações proteções mais amplas, assegurando-se tratamento nacional26 aos nacionais dos demais membros, sendo previsto o tratamento de nação mais favorecida,27 que prevê que as vantagens e favorecimen-tos concedidos aos nacionais de qualquer outro país sejam outorgados aos nacionais dos demais membros.

O Acordo TRIPS não contém qualquer cláusula geral proibindo a concorrência

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desleal, como possui o art. 1°-bis da CUR28 Entretanto, algumas previsões podem ser encontradas nesta direção, como em seu art. 17;29 e, de qualquer modo, deixa todo o problema da proibição da concorrência desleal para as legislações nacionais.

Expresso no art. Ar-bis da Convenção da União de Paris, o princípio da independência estabelece que cada Estado determina os pressupostos e os efeitos da pro-teção por este concedido, e, por consequência, determina que os direitos paralelos existentes nos diversos Estados são independentes entre si, existindo uma proteção diferente a cada país que a concedeu.

Assim, há uma territorialidade absoluta dos direitos privativos industriais, e, sendo estes independentes, o exercício de um direito no território de certo Estado não teria qualquer repercussão no direito existente em outro Estado, uma vez que a proteção de um direito de propriedade industrial é exclusivamente regida pela legislação do país em virtude da qual este direito foi conferido; e, em contrapartida, o efeito da proteção concedida pela lei interna limita-se ao território em relação ao qual esta lei é aplicável.

2.2. 2 O TRIPS e a Convenção sobre Diversidade Biológica

Segundo30 disposições do TRIPS, foi deixado ao arbítrio dos países-membros da Organização Mundial do Comércio a exclusão ou não, através de suas leis nacio-nais, da proteção de plantas e animais e dos procedimentos essencialmente biológicos para sua obtenção.31 Esta incerteza quanto à patenteabilidade de invenções biotecno-lógicas32 pode afetar o comércio destes produtos e inibir investimentos em pesquisa e desenvolvimento neste campo, uma vez que se faz necessário que as leis nacionais forneçam respostas mais precisas sobre questões, por exemplo, da distinção entre procedimentos essencialmente biológicos e procedimentos microbiológicos.

O Acordo TRIPS e a Convenção sobre Diversidade Biológica parecem ser contraditórios em seus objetivos e práticas com relação ao acesso e à remuneração aos recursos oriundos da diversidade biológica e dos conhecimentos tradicionais,33 muito

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embora sejam constituídos basicamente pelos mesmos Estados-membros, com a notável exceção dos Estados Unidos,34 que não integram a Convenção.

De acordo com o TRIPS,35 os países se obrigam a proteger os microorganismos36 e as variedade de plantas, conferindo direitos exclusivos ao titular; desta forma, diverge dos princípios da Convenção, pois o...

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