A Propriedade Privada Imóvel no Direito Penal

AutorÁlvaro Borges de Oliveira - Fábio Fernandes de Oliveira Lyrio
CargoProfessor titular do doutorado, mestrado e graduação em Ciência Jurídica na Universidade do Vale do Itajaí - Mestrando em Ciência Jurídica/UNIVALI
Páginas13-19

Page 13

Excertos

"O poder de uso, fruição e disposição da terra e seus acessórios há muito é compreendido em qualquer grupamento humano, do mais ele mentar ao mais complexo, como algo de significativo valor; ou seja, como um bem"

"Assim como ocorre com a tutela civil, a tutela penal da propriedade imobiliária se estende tanto ao possuidor quanto ao proprietário"

"Embora o Código Penal se utilize da definição de esbulho oferecidapelo direito civil, com ela não se confunde"

1. Introdução

O presente trabalho se propõe analisar o tratamento dispensado pelo ordenamento jurídico penal brasileiro à questão da tutela da propriedade imóvel, abordando, em linhas gerais, a problemática que se desenvolve em torno das formas de defesa daquele que pode ser considerado um dos bens jurídicos mais caros à sociedade humana em todo seu o desenvolvimento histórico.

Desdobrando o texto em dois momentos, no primeiro situa-se a relevância da propriedade imóvel como bem jurídico, reconhecido como tal desde a antiguidade clássica, incorporado com particular importância pelas doutrinas políticas que se impuseram dominantes no momento de constituição do Estado moderno, até, por derradeiro, ser recepcionada pelo estado constitucional contemporâneo.

A partir deste reconhecimento, o segundo momento é destinado à análise da inserção do direito pe-

Page 14

nal no complexo sistema de tutela jurídica deste bem. Tal análise se desenvolve a partir da descrição detalhada da disciplina normativa que é dedicada aos atentados contra a propriedade imobiliária no corpo do código repressivo brasileiro e da abordagem breve dos aspectos processuais penais mais relevantes à espécie, como os institutos da ação penal, procedimento e competência para julgamento no juízo criminal.

Em considerações finais, apresenta-se breve síntese da argumentação exposta, mas com a preocupação de destacar a relevância do questionamento e da re? exão acerca do tratamento da propriedade imóvel no direito penal brasileiro.

2. A propriedade imóvel entendida como bem jurídico

É intuitivo que a propriedade imóvel se constitui em um relevante valor a todo e qualquer grupamento social contemporâneo. E igualmente intuitivo é o fato de que, em tal condição, deve ser objeto de especial proteção e tutela por parte de todas as formas e modelos de ordenamento jurídico. Assim o é na experiência jurídica brasileira e, pode-se a? rmar com tranquilidade, na absoluta maioria dos sistemas de direito que se conhece.

Não obstante ser a ocorrência da ideia espontânea e, assim, despiciendas maiores digressões teóricas, para uma observação mais próxima e nítida dos contornos que a tutela da propriedade imóvel assumiu na atualidade, duas tarefas liminares se revelam es-tratégicas: primeiro, a fixação dos limites conceituais da categoria propriedade imóvel; e, segundo, a caracterização desta sua condição de bem jurídico especialmente caro à sociedade ocidental, des-de seus primórdios na antiguidade clássica até a consolidação do modelo político-institucional que integramos na contemporaneidade, o estado constitucional1.

Acerca da extensão conceitual do termo propriedade imóvel, sugere-se, a partir de Gomes2, a fixação de seus limites de modo que seja entendida como a relação jurídica de submissão que se estabelece entre um indivíduo e uma fração do solo e suas eventuais acessões, através do qual aquele adquire o poder de usar, fruir e dispor desta e, ainda, reavê-la de quem a possua ou detenha de for-ma injusti? cada.

A partir de tal de? nição, de imediato, percebe-se que o poder de uso, fruição e disposição da terra e seus acessórios há muito é compreendido em qualquer grupamento humano, do mais elementar ao mais complexo, como algo de signi? cativo valor; ou seja, como um bem3.

Uma vez que se compreenda como bem "tudo aquilo que possui um valor moral ou físico positivo, constituindo o objeto ou o fim da ação humana4", sem maiores di? culdades pode-se compor um conceito operacional de bem jurídico, somando-se à de? nição acima a circunstân-cia deste aludido bem ser reconhecido como tal pelo conjunto de imperativos compreendidos como normas de conduta cogentes por determinado grupamento social.

Posta a questão inicial sob as limitações conceituais realizadas nos parágrafos anteriores, a intuição antes apontada, no sentido de que a propriedade imóvel é um dos exemplos mais característicos de bem jurídico e, desta forma, objeto recorrente de tratamento pelos teóricos políticos e

pelos teóricos do direito e de disciplina pelos sistemas de direito, confirma-se e ganha o lastro necessário para que, a partir dela, possa-se atingir a compreensão da complexidade do seu tratamento e tutela no ordenamento jurídico brasileiro.

Quanto ao seu desenvolvimento histórico, tanto o instituto da propriedade imóvel, quanto o seu tratamento político e jurídico embrionário, na forma que hoje conhecemos, pode ter sua origem atribuída ao pensamento greco--romano5, embora se saiba que a propriedade pode ser estudada a partir de sistemas como de Kant, Marx ou Hegel, bem como em períodos históricos, como se está a fazer.

Antes do direito romano, onde ela ainda faz parte da instituição da sociedade juntamente com a família e a religião, que são três coisas solidamente estabelecidas na época, como se percebe da leitura de Fustel de Coulanges6, não havia deveres do cidadão, enquanto proprietário, para com a comunidade.

A propriedade por estar ligada diretamente ao lar, à religião, era identi? cada com a faculdade de se fazer o que se quisesse com a coisa, ilimitada. Até então, dada esta característica divina da propriedade, o direito de propriedade estava acima de tudo e tão grande é sua inviolabilidade7.

Destarte, conclui-se que a propriedade, onde ficavam os deuses (antepassados), só deixou de ser inviolável e acima de tudo com a chegada do cristianismo, pois a propriedade deixou de ser o único lugar onde se encontravam os deuses para se ter um único deus que estava em todos os lugares.

Com o cristianismo a proprie-dade podia ser alienada, já que os

Page 15

deuses não mais se encontravam ali, um único deus onipresente.

A ideia de propriedade que veio a prevalecer entre os romanos é a que modernamente se qua-li? ca como individualista, na qual cada coisa teria apenas um dono e os poderes do proprietário seriam os mais amplos possíveis. Tal caráter individualista da proprie-dade imóvel, que viria a ser mo-di? cado na Idade Média através da assunção da possibilidade de concorrência de proprietários sobre o mesmo imóvel e da dissociação entre os conceitos de domínio eminente e domínio útil8, acabaria por se impor com a estruturação do Estado moderno9.

Esta nota individualista foi, com signi? cativa intensidade, ma-tizada pelo surgimento das preo-cupações concernentes aos re? e-xos sociais do uso da propriedade imóvel, as quais são contemporâneas ao advento do Estado constitucional. E é justamente aqui que exsurge o elemento complicador do estudo da tutela penal da propriedade imóvel.

Explica-se:

O tratamento dispensado pelo vigente Código Penal brasileiro, datado de 7 de dezembro de 1940, à tutela da propriedade imóvel re? ete justamente a histórica concepção individualista e plena do uso da terra, consagrada pelos ideais liberais que permearam o Estado moderno após o sucesso do processo revolucionário fran-cês de 1789. Sobre tais fundamentos, a propriedade imóvel foi compreendia como um bem jurídico penalmente relevante pelo legislador brasileiro, e sobre tal alicerce estruturado o sistema de normativas penais com função de garanti-la.

Desta forma, a compreensão adequada da extensão da tutela penal da propriedade imóvel no ordenamento jurídico brasileiro somente poderá ser feita a partir de uma leitura das normas penais que seja convergente ao tratamento constitucional dado ao bem jurídico em questão.

3. O tratamento penal da tutela da propriedade imóvel

Na forma apresentada no item anterior, uma vez entendida como bem jurídico, a propriedade imóvel é objeto de tutela pelo ordenamento jurídico penal brasileiro.

Liminarmente, é importante que se registre a advertência feita por Bitencourt10 no sentido de que a tutela da propriedade imobiliária, historicamente, tem recebido melhor e mais e? caz tratamento no âmbito do direito privado, fazendo com que o direito penal assuma, neste sentido, uma feição subsidi-ária, que se justi? ca-ria não somente pela essência do direito repressivo - a última ratio juris, por excelência -, mas especialmente pela sua ine? ciência diante do próprio con? ito imobiliário.

Não obstante, ainda que se concorde que as medidas judiciais civis se mostram mais e? cazes na garantia imediata dos interesses do proprietário, por representarem resposta célere ao atentado contra a propriedade imóvel, especialmente no caso de turbações recentes, não se pode olvidar que a abertura da possibilidade de res-ponsabilização penal àqueles que dirijam qualquer forma de ataque à propriedade imóvel acaba por fortalecer o sistema jurídico de sua proteção, compreendido como totalidade.

Desta forma, a adequada imagem da articulação das esferas de atuação e responsabilização jurídica na tutela da propriedade imóvel se revela útil não somente para se demonstrar, teoricamente, o grau de relevância que o bem jurídico em questão assume nas sociedades contemporâneas, mas, especial-mente, para consolidar, na práxis dos juristas, a real noção da multiplicidade de instrumentos postos pelo ordenamento jurídico para proteção imobiliária.

Igualmente cabe destacar que, assim como ocorre com a tutela civil, a tutela penal da proprie-dade imobiliária se estende tanto ao possuidor quanto ao proprietário. Na tutela civil diferencia-se o possuidor do proprietário quanto a modalidades de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT