Protagonismo negro, educacao antirracismo e os quilombolas urbanos como "outros sujeitos": uma problematizacao necessaria/Black protagonism, anti-racism education and urban quilombolas as "other subjects": a necessary problematization.

AutorMocelin, Cassia Engres
CargoREVISTA EM PAUTA

Introducao

O Brasil forjou-se enquanto Estado-Nacao ancorado no latifundio, na monocultura e no trabalho escravo, inicialmente da populacao indigena e, posteriormente, da populacao negra africana. A escravidao foi, portanto, um elemento fundamental no processo de acumulacao de capital, tendo o racismo como sua justificativa ideologica. Por isso, as "[...] correntes da escravidao se confundem com as raizes do capitalismo" (SILVA, 2016, p. 27). Nao havia direitos para quem nao era considerado como ser humano. Tampouco tais populacoes foram tomadas como sujeitos da historia intelectual e cultural do Brasil, assim como em toda a America Latina. Por isso, a cultura e a afirmacao de direitos nao sao nocoes cristalizadas no imaginario dos/as cidadaos/as brasileiros/as. Ou seja, nao existe - ou, ainda, existe de forma parcial - a concepcao de sujeitos de direitos.

Foi por meio das lutas sociais, expressas na rebeldia e na resistencia da classe trabalhadora frente a exploracao e expropriacao do capital, que a questao social rompeu o dominio privado das relacoes entre capital e trabalho, extrapolando da esfera privada para a esfera publica. Para Iamamoto (2015), a questao social na cena contemporanea e na era das financas esta sendo reconfigurada, tendo em vista o predominio do capital financeiro.

Nessa perspectiva, a questao social e mais do que as expressoes de pobreza, miseria e 'exclusao'. Condensa a banalizacao do humano, que atesta a radicalidade da alienacao e a invisibilidade do trabalho social - e dos sujeitos que o realizam - na era do capital fetiche. A subordinacao da sociabilidade humana as coisas - ao capital-dinheiro e ao capital mercadoria -, retrata, na contemporaneidade, um desenvolvimento economico que se traduz como barbarie social. (IAMAMOTO, 2015, p. 125).

A questao social tambem condensa uma arena de lutas e disputas politicas entre projetos societarios distintos, gerados pelo conjunto das desigualdades sociais, economicas, politicas e culturais. Essas sao "[...] mediatizadas por disparidades nas relacoes de genero, caracteristicas etnicoraciais e formacoes regionais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade civil no acesso aos bens da civilizacao" (IAMAMOTO, 2015, p. 160).

Neste artigo, optou-se pela utilizacao da questao racial, considerando o termo "raca" no seu sentido sociologico, politico, e nao biologico. Compartilhamos a posicao de Eurico (2013) de que a questao racial e ampliada na trama das relacoes sociais e na forma como a populacao negra acessa a riqueza socialmente produzida, os bens e servicos, como se insere no mercado de trabalho, na invisibilidade escolar, entre outros aspectos. Nessa perspectiva, consideramos que o racismo e estrutural, pois que ele organiza as relacoes sociais tanto quanto as relacoes de classe.

No contexto da America Latina, as populacoes indigenas, negra, quilombola, os coletivos de mulheres e LGBTI, trabalhadores/as rurais e urbanos/as, por meio de suas lutas sociais, atribuem densidade politica a questao social e a questao racial na cena publica. Reside ai a importancia de dar visibilidade a esses sujeitos, assim como trazer o protagonismo de suas lutas sociais.

No ambito do Servico Social, o Codigo de Etica, em 1993, por meio de seus principios fundamentais, ressignifica a questao racial e orienta a categoria profissional ao "Empenho na eliminacao de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito a diversidade, a participacao de grupos socialmente discriminados e a discussao das diferencas" (CFESS, 2012, p. 23-24), assim como articula a construcao e "Opcao por um projeto profissional vinculado ao processo de construcao de uma nova ordem societaria, sem dominacao, exploracao de classe, etnia e genero" (CFESS, 2012, p. 23-24). Desse modo, a luta contra o racismo e tambem uma luta contra o capitalismo, em que raca e classe formam um todo indissociavel.

Este artigo objetiva discutir a opressao e a segregacao dos negros como "outros sujeitos" (ARROYO, 2014) e o protagonismo de suas lutas como pressuposto de um processo politico-social-educacional afirmativo e antirracista. Para tanto, procura dialogar com Arroyo (2014) e Mariategui (2003, 2007) no intuito de demonstrar o direito a educacao como uma luta social e historica dos povos considerados pelas elites latino-americanas do capital como sendo "sem cultura". O estudo apoia-se em material empirico, coletado nos quilombos urbanos do municipio de Porto Alegre, (1 ) cotejando o enfoque educacional, bem como no materialismo historicodialetico como metodo. Para este, seu ponto de partida sao os sujeitos reais na sua existencia empirica, o que possibilita a compreensao da interseccao entre classe, raca e genero no Brasil.

Nesta perspectiva, a populacao quilombola apresenta-se como um dos segmentos sociais mais vulnerabilizados, inclusive com indicadores socioeconomicos e educacionais abaixo da populacao negra em geral. Conforme o Art. 2o do Decreto no 4.887, de 20 de novembro de 2003, consideram-se remanescentes das comunidades quilombolas "[...] os grupos etnico-raciais, segundo criterios de auto-atribuicao, com trajetoria historica propria, dotados de relacoes territoriais especificas, com presuncao de ancestralidade negra relacionada com a resistencia a opressao historica sofrida" (BRASIL, 2003a, p. 1).

Embora a maioria das comunidades remanescentes de quilombos esteja localizada no meio rural, tambem existem quilombos urbanos. O primeiro deles, certificado em 2004, foi o Quilombo da Familia Silva, localizado no municipio de Porto Alegre. Segundo a Fundacao Palmares (2020) (2) , existem no Brasil 3.432 comunidades remanescentes de quilombos certificadas, sendo que 136 destas estao no Rio Grande do Sul.

A pesquisa encontra-se em andamento, e a coleta de dados das entrevistas que constam no presente artigo foi realizada em 2018 e 2019. Em Porto Alegre, existem atualmente cinco comunidades quilombolas reconhecidas (Quilombo do Areal, Quilombo dos Alpes, Quilombo Familia Silva, Quilombo Familia Lemos e Quilombo Fidelix), sendo que todas participaram de nossa pesquisa. Fizeram parte em torno de 30 pessoas (mulheres quilombolas, liderancas quilombolas, idosos quilombolas), em entrevistas e grupos focais entre todos os quilombos, que foram gravados, posteriormente transcritos e submetidos a analise de conteudo tematica.

Para apresentar a pesquisa desenvolvida, o texto esta organizado em tres partes, alem da presente introducao. A primeira discute o processo de opressao e segregacao dos quilombolas urbanos como "outros sujeitos" no referente a fruicao do direito a educacao. A segunda parte busca tensionar a potencialidade da educacao como uma praxis antirracista, considerando o protagonismo e as vozes dos "outros sujeitos". Por fim, tem-se as consideracoes finais.

Lutas sociais e reconhecimento do direito a educacao: problematizando os quilombolas urbanos como "outros sujeitos"

Para Arroyo (2014), ha uma historia cultural ocultada, e, assim, ocultam-se tambem seus sujeitos sociais, etnicos, raciais, camponeses e das florestas. Essa historia so e desocultada por meio da luta empreendida pelos movimentos sociais e de sua radicalidade politica enquanto coletivos populares. "Ocultar a cultura popular tem sido uma forma de ocultar o povo como sujeito de cultura" (ARROYO, 2014, p. 109) e da historia.

Alem disso, o ocultamento e o apagamento nao se referem apenas a dimensao cultural e estetica, mas tambem ao entendimento de que aqueles sujeitos apagados culturalmente sao oprimidos e segregados social e racialmente. Sao esses mesmos sujeitos que tiveram suas culturas apagadas e seus modos e condicoes de vida destrocados quando do descobrimentoencobrimento da America pelos povos ibericos, e que continuaram, no devir socio-historico, como culturas silenciadas e sujeitos oprimidos, funcionalidades a logica do capital.

No entanto, existe um movimento contra-hegemonico de resistencia dos povos oprimidos, dos que vivem a margem e que estao silenciados. Na tentativa de desocultar a historia, desocultam-se a si mesmos e, assim, afirmam-se enquanto sujeitos de cultura e sujeitos de direitos, ou seja, "outros sujeitos". Mas quem sao "os outros sujeitos"?

Em nossas sociedades latino-americanas sao os grupos que se fazem presentes em acoes afirmativas nos campos, nas florestas, nas cidades, questionando as politicas publicas, resistindo a segregacao, exigindo direitos. Inclusive o direito a escola, a universidade. Sao os coletivos sociais, de genero, etnia, raca, camponeses, quilombolas, trabalhadores empobrecidos que se afirmam sujeitos de direitos. Outros sujeitos. (ARROYO, 2014, p. 9 - Grifo nosso).

Arroyo (2014) desenvolve o conceito de "outros sujeitos", a qual sera problematizada neste artigo, pois, ao considerar as populacoes...

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