A proteção estatutária do direito à convivência familiar e comunitária
Autor | Jadir Cirqueira De Souza |
Ocupação do Autor | Maestría en Derecho Público de la Universidad de Franca - SP , especialista en Procedimiento Civil de la Universidad Federal de Uberlândia - MG y Licenciado en Derecho por la Universidad Gama Filho , Rio de Janeiro |
Páginas | 101-225 |
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Depois de examinar a secular vontade de abrigar em detrimento dos direitos familiares fundamentais, torna-se necessário conhecer os principais problemas causados pela utilização do abrigamento indevido e prolongado, a partir da visão daqueles que em tese deveriam ser protegidos da violência da família, da sociedade e do Estado.
O tema, portanto, passa a ser examinado, sob a perspectiva das vítimas que estão abandonadas em milhares de abrigos brasileiros, sendo estimativamente, mais de 43.585, segundo o CNJ ou mais de 33.456, segundo o SUAS (Sistema Único de Assistência Social).1Registre-se que além do intenso sofrimento das famílias que perderam seus filhos em virtude da pobreza financeira, apesar do ECA2ser enfático na proibição, também são visíveis os problemas psicológicos causados às cuidadoras dos abrigos.3Vale dizer: os membros das instituições são vitimizados, na medida em que são obrigados a conviver com as traumáticas histórias das vítimas. Muitas vezes, sem preparo mínimo para o exercício das relevantes atividades, por sérios problemas comportamentais, agridem as vítimas num círculo perverso e silencioso de maus-tratos dentro das instituições que deveriam proteger.
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A retirada de uma criança e/ou adolescente é traumática, difícil e provoca múltiplos sofrimentos para as famílias, crianças e adolescente e as pessoas que cuidam dos abrigos, indistintamente. Do mesmo modo, a permanência prolongada viola os direitos de todos, sejam familiares, cuidadores, crianças e adolescentes, além das pessoas interessadas na temática.
Enfim, será mostrado que muitas vezes, a decisão jurisdicional (Poder Judiciário) ou administrativa (Conselho Tutelar) é desnecessária e desproporcional, não considera a retirada das crianças das famílias como uma das mais sérias restrições a um direito fundamental, além de violar os princípios e liberdades fundamentais relativos aos procedimentos (contraditório, ampla defesa e devido processo legal) e, no fundo somente reforça o sofrimento de todos os envolvidos, pois muito raramente, em seguida à consumação do acolhimento institucional, existem efetivas políticas públicas de proteção integral.
É rica a história mundial em apresentar significativos acontecimentos que demonstraram os diversos sofrimentos causados aos diversos grupos sociais desprotegidos, por conta dos tratamentos coletivizados e estigmatizantes, tais como em relação aos judeus, aos negros, aos doentes mentais e possuidores de necessidades especiais, mulheres, crianças negras e pobres, etc, sendo interessante a releitura de Michel Foucault4 e Hannah Arendt.5Nas sociedades ditas modernas caminha-se para novas formas de arranjos e/ou instituições familiares, em que pese a manutenção do secular paradigma de que é na família biológica que ocorrem as mudanças sociais mais significativas, principalmente a mudança paulatina de valores antropológicos e humanitários.
Os novos arranjos familiares, as atuais percepções das famílias contemporâneas e os valores internos, alcançados e sedimentados na juris-
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prudência emanada dos tribunais superiores, ainda estão distantes da unanimidade, sobretudo em virtude do forte viés religioso que formata a sociedade brasileira, porém, sobretudo no plano jurisdicional existem avanços significativos, principalmente no âmbito socioafetivo.
Mais uma vez, paradoxalmente, mesmo reconhecendo-se as interessantes mudanças sociológicas e culturais, inclusive com a força e a importância das novas relações familiares socioafetivas, do outro lado, existe um fosso escondido nas trincheiras da ignorância social. É que, se de um lado discutem-se os novos arranjos familiares, do outro lado, mais de 40.000 crianças e adolescentes estão abarrotando os abrigos e aguardando-se a pacificação das discussões doutrinárias, diga-se de passagem, intermináveis, embora exista aceitação tácita, no início do século XXI, no sentido de que a defesa preventiva das entidades familiares constitui a base dos principais sistemas jurídicos ocidentais.
É evidente que existe a necessidade de manutenção dos agrupamentos sociais, nas modalidades de escolas, quartéis militares, hospitais, prisões, etc., dentro de suas respectivas especificidades e funções. Não é adequado e, daí a importância do presente trabalho é, sob o pretexto de proteger, tão-somente abrigar e esquecer, sendo que no livro de Pete Earley, como paradigma, observa-se como o sistema criminal norte-americano confunde ilicitude penal com doença mental e termina por aplicar severas penas criminais a doentes mentais.6O ensino ministrado nas escolas traz fundamentos coletivos, embora com a utilização de técnicas no sentido de garantir a individualidade, pela própria composição estrutural das instituições de ensino. Aliás, além de formar e informar, é nas escolas que as crianças e adolescentes
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interagem com os demais, dentro do saudável e necessário convívio coletivo estudantil.
As modernas técnicas militares também exigem a adoção de tratamento coletivo, posto que a preparação dos integrantes das Forças Armadas e das polícias, frequentemente exigem ações conjuntas de grupos táticos organizados e preparados coletivamente, principalmente nas ações contra as organizações criminosas.
Muitas vezes, pessoas de diferentes idades, acometidas de doenças contagiosas devem ser tratadas em alas hospitalares coletivas, como forma de proteger as demais pessoas. Troca-se, por força de específicas recomendações médicas, medidas individuais por medidas coletivas, sendo os hospitais psiquiátricos uma das alternativas para a manutenção de pessoas doentes e que provocam sérios perigos e/ou violações de direitos por conta da gravidade das doenças.
Os centros prisionais (penitenciárias e cadeias) são também elementares formas de segregação da liberdade das pessoas que cometeram infrações penais graves e, por conta das respectivas condutas são afastadas do convívio social e familiar, e mantidas coletivamente por tempo e em locais determinados, normalmente fechadas nos equipamentos penitenciários. Constitui secular necessidade social, muito embora com sérias discussões sobre a utilidade e a necessidade, uma vez que a manutenção de presos encarcerados por longos períodos exige cada vez mais grandes quantias mensais de custeio das atividades penitenciárias, em detrimento dos baixos índices de reintegração social.
A própria ideia de pertencimento às associações civis, sindicatos, igrejas e minorias étnicas são fundamentos estimulados pelo ordenamento jurídico em vigor e pelos princípios inerentes à democracia plural e participativa, além da própria necessidade de convivência humana. É que a conjugação de esforços – dentro dos espaços democráticos da sociedade civil – permite a defesa coletiva de direitos fundamentais, em todos os níveis, com muito mais força e eficiência institucional, muitas vezes, como visto, sem depender das instituições jurídicas ou estatais.
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Enfim, são situações recorrentes na vida que recebem estímulos no sentido da manutenção do tratamento coletivizado, todas com regras, princípios e objetivos específicos, que, à toda evidência, em nada podem ser comparados ao abrigamento indevido e prolongado de crianças e adolescentes.
Nos termos aparentemente condizentes com a legislação menorista em vigor, torna-se interessante destacar que no decorrer do século XX, a institucionalização foi amplamente aplaudida por vários segmentos da sociedade civil, pela força dos Juizados de Menores, inclusive com estudos científicos – de fundo higienista que em muitas hipóteses – defendiam a segregação e/ou retirada dos menores das ruas e avenidas, como se pode constatar na autorizada doutrina de Maria Luíza Marcílio7e Irene Rizzinni.8Na atualidade, não são mais encontrados estudos científicos – de cunho médico, jurídico, psicológico e religioso –, como recorrente nos séculos anteriores, que apontem para as vantagens do abrigamento nitidamente higienista, porém a realidade funcional dos abrigos brasileiros permanece inalterada, inclusive apresentando circuitos ocasionais de crescimento, a despeito dos esforços do CNJ, CNMP, tribunais e das instituições da sociedade civil que repudiam o tratamento coletivizado oferecido nos abrigos.
Dentro do contexto prático acima, alguns argumentos podem ser desenvolvidos, evidentemente desdobráveis, no sentido de mostrar os malefícios do...
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