Prova digital e afetação de direitos fundamentais

AutorDario José Kist
Ocupação do AutorMestre em Direitos Fundamentais
Páginas283-319
Prova Digital no Processo Penal
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1. Nota introdutória
É fato inconteste que o surgimento e desenvolvimento da Internet, da
informática e dos novos mecanismos de telecomunicação que as conjugam
e são delas dependentes, bem como o aprimoramento de aparelhos e
dispositivos utilizados, alterou completamente a comunicação a distância
entre as pessoas; enquanto novas tecnologias de comunicação e informa-
ção, essas ferramentas permitiram uma circulação célere e massiva de
informações, novas formas de comunicar e de interação social, ensejando
uma verdadeira remodelação da sociedade, sendo fator decisivo para o
fenômeno da globalização427.
O que não se alterou é a essência das comunicações fechadas428, ou
seja, os indivíduos, apesar de se comunicarem mais por conta das facilidades
para tanto existentes, não abriram mão da privatividade e condencialidade
das mensagens que emitem e transmitem, que pretendem continuem
restritas aos destinatários eleitos para o efeito. E, se de um lado houve uma
universalização no acesso às tecnologias de comunicação, esta mesma
revolução potenciou novas formas de vulnerar a privacidade dos partici-
pantes dos processos de comunicação, pois os mecanismos de intromissão
alheia em comunicações privadas experimentaram a mesma sosticação
dos próprios meios de comunicação.
E a isso é de se acrescentar outro fenômeno, também novo e produto
típico da informática, que é o recolhimento, o tratamento e o armaze-
namento de dados, inclusive e notadamente os de ordem pessoal que,
por isso, cam expostos a signicativos riscos de vulneração, afetando a
privacidade429.
Em outros termos, o fenômeno que se está a descrever representa
uma intensa realidade na vida da grande maioria das pessoas do planeta
427 PAULO DÁ MESQUITA refere-se à situação deste modo: “Na contemporaneidade um
dos principais fenómenos que se repercute na alteração da sociedade enquanto complexo de
comunicações é a evolução tecnológica e a proliferação dos mediadores e dos sistemas de
transmissão, captação e registro de som e imagem, com padrões impensáveis há poucos anos
em termos de manuseabilidade, abilidade, baixo custo, susceptibilidade de manipulação,
imprevisibilidade”. (Processo Penal..., p. 83).
428 O conceito de comunicação fechada encontra-se na Parte I, tópico 3.1.1.
429 MARQUES, Garcia e MARTINS, Lourenço. Direito da Informática. Coimbra: Almedina,
2006, p. 137.
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e, pelos riscos de afetação de direitos individuais, mais expostos do que
antes, impõe que o Direito, no cumprimento da tarefa de regular a vida
em sociedade, elabore mecanismos que resguardem ao máximo os
referidos direitos, muitos deles com dignidade e estatura constitucional
e, nessa medida, embora com signicados adaptáveis, providencie a
imunidade contra restrições que lhes afetem negativamente a substância
e a essência.
Com esses pressupostos, é certo que vários direitos fundamentais
cam expostos com as comunicações eletrônicas. Cita-se, a título de
exemplo, a privacidade ou reserva da intimidade da vida privada e familiar, a
inviolabilidade do domicílio, do sigilo da correspondência e das telecomu-
nicações, assim como a autodeterminação informacional e comunicacional,
e as ameaças de afetação podem advir tanto de atos de invasão e devassa
praticados por particulares, como de ações perpetradas pelos agentes
do Estado.
Naturalmente, o que interessa aqui são os casos em que a vulneração
a esses princípios é obra do Estado no afã de recolher provas sobre a
ocorrência e autoria de infrações penais, de modo especial, de cibercrimes.
Efetivamente, já se teve ocasião de apresentar as principais características da
prova digital, o que é suciente para assumir que a sua produção deve
seguir um regramento especíco e rígido para evitar que, na expectativa
de armar o jus puniendi, se interra na esfera individual do visado a ponto
de eliminar as prerrogativas que nascem dos direitos fundamentais; a
ideia corrente nesse âmbito é no sentido de serem admitidas restrições
a tais direitos, desde que tipicadas em lei ou, pelo menos, não vedadas,
e concretamente sejam necessárias, adequadas e proporcionais, além de
não poderem afetar o núcleo ou a essência do referido direito fundamental.
E é nessa lógica que os sistemas normativos, em geral, estipulam de-
terminadas proibições de prova ou meios proibidos de obtenção de prova
– como o uso de tortura, de coação e de ofensa da integridade física ou
moral do suspeito para obter conssão, a abusiva intromissão na vida priva-
da, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações – inquinando
de nulidade absoluta a prova recolhida com recurso a esses métodos.
Na sequência, será feita breve análise do conteúdo de cada um
dos direitos fundamentais enunciados, ao mesmo tempo em que haverá
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referências aos modos de sua afetação no percurso que o Estado realiza
para recolher e produzir a prova digital.
Antes, porém, cabem dois esclarecimentos de natureza metodológica.
O primeiro é para dizer que, bem compreendida a signicação dos
citados direitos para o contexto processual penal, será possível concluir
que todos se reconduzem a um só, que é a reserva da vida privada e da
intimidade. Com efeito, a proteção conferida ao domicílio pretende, em
última análise, preservar a vida privada que tem nele um locus de especial
manifestação e desenvolvimento; as garantias contra a ingerência abusiva
nas comunicações entre particulares, feitas por qualquer meio (postal,
telefônico ou eletrônico) também pretendem proteger a privacidade
das informações contidas nas mensagens comunicadas. Por tal razão, e
pressuposta essa compreensão sobre a temática, será conferida especial
atenção à privacidade e intimidade, pois a proteção a elas destinada poderá
ser considerada o paradigma de tutela de todos direitos fundamentais
implicados na produção da prova digital.
O segundo: a compreensão sobre os modos de afetação da priva-
cidade e da intimidade na comunicação eletrônica pressupõe denir a
tipologia dos dados que ditas comunicações produzem ou de que são
compostas. Efetivamente, constituem situações diferentes os atos de
acessar o endereço físico de um usuário de correio eletrônico, obter o
endereço IP deste mesmo usuário e acessar o conteúdo de um e-mail
por ele transmitido. O nível de ingerência na esfera privada é distinto em
cada uma dessas situações e, em consequência, a intensidade da tutela do
direito também deve variar. Por isso, e antes da abordagem dos direitos
fundamentais citados, relembra-se430 os principais elementos conceituais
acerca da tipologia de dados produzidos pelas comunicações eletrônicas.
2. Tipologia de dados envolvidos em comunicação eletrônica e afetação de
direitos fundamentais
Conforme antes mencionado, para estabelecer um adequado regime
jurídico para a recolha da prova digital, é necessário denir quais são os
dados que numa concreta comunicação são mobilizados e gerados. E, na
430 As noções gerais sobre essa tipologia constam na Parte III, Capítulo I, tópico 1.4.
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