A prova em matéria previdenciária e o direito fundamental à inafastabilidade do controle jurisdicional

AutorFabiana Pedroso Paz
Páginas63-92

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O problema da inadequação no curso da instrução probatória pre-videnciária ganha cores vivas quando analisado sob o prisma do direito à inafastabilidade do controle jurisdicional, em razão da própria concepção dessa garantia na atual Carta Constitucional, a qual pressupõe a consecução de um processo adequado e efetivo, que atenda aos ditames do Direito ao Processo Justo. Para tanto, exige-se, entre outras coisas, que a garantia constitucional da isonomia reflita no processo, principalmente no curso da instrução probatória, restando indispensável a criação de mecanismos que coloquem as partes em situação de igualdade,131 os quais pressupõem uma participação ativa do magistrado no curso da demanda.

Seguindo essa perspectiva, em se tratando de matéria previdenciária, para que os ditames do Direito ao Processo Justo sejam alcançados e o direito de acesso à justiça concretizado em sua plenitude, faz-se necessária a observância das peculiaridades que envolvem demandas dessa natureza, como, por exemplo, a condição de vulnerabilidade do segurado na relação processual. É nessa direção que se pretende desenvolver o presente capítulo.

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Considerações iniciais sobre o direito fundamental à inafastabilidade do controle jurisdicional na perspectiva do direito ao processo justo

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a instituição de um Estado Democrático de Direito, obrigatoriamente, fez-se necessária a instauração da justiça como um de seus valores supremos. Nessa esteira, tornou-se indispensável a garantia do direito de acesso à justiça, ou seja, o direito à apreciação do controle jurisdicional.132 Assim, o direito de acesso à justiça ou direito à inafastabilidade do controle jurisdicional encontra-se consagrado como um direito fundamental no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988, com a seguinte redação: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito", preceito que assegura não só a proteção dos direitos individuais violados, como também a prevenção à ameaça de violação de direitos.

No mesmo trilhar, mostrando-se comprometido com a concretização do direito fundamental de acesso à justiça, segue o Novo Código de Processo Civil, preceituando, no caput de seu art. 3º, redação praticamente idêntica à apontada pelo texto constitucional. A esse respeito, comentaram Marinoni, Arenhart e Mitidiero:

Ao proibir a justiça de mão própria e afirmar que a 'lei não excluirá do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito' (art. 5º, XXXV, CF), nossa Constituição afirma a existência de direito à tutela j urisdicional adequada e efetiva. Ao reproduzir semelhante dispositivo, o art. 3º, caput, funciona como uma clláusulla de destaque desse compromisso do novo Código.133

Trata-se de um dos mais importantes princípios constitucionais,134 visto que lhe incube a tarefa de assegurar o reconhecimento e o exercício dos demais direitos e garantias previstos no texto constitucional.135 Em relação

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ao tema, a atual Carta Constitucional inovou, passando a não legitimar a chamada jurisdição condicionada ou instância administrativa de curso forçado, permitindo, assim, o acesso à justiça sem o prévio esgotamento da via admi-nistrativa.136

Tecidas considerações iniciais acerca da positivação do direito à inafas-tabilidade do controle judicial, torna-se imperiosa a análise de seu alcance, bem como de seu conteúdo, uma vez que este "não se exaure com a simples abertura das portas do judiciário".137 Nesse sentido, explicou Takoi:

A inafastabilidade do controle jurisdicional ou direito de ação não garante apenas a apreciação judicial, mas também que esta tute-

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lla seja proferida em prazo razoávell e de forma adequada ao caso concreto, bem como a efetividade da decisão — assegurando o resultado prático da medida — autorizando assim providências cautelares e anttecipattórias.138

Consoante esse panorama, a garantia de acesso à justiça pode ser abordada a partir de duas concepções: como proteção judiciária e como atuação por meio de um processo justo. A primeira concepção é sinónimo de acesso ao Poder Judiciário, mediante a simples afirmação de existência de um direito; já a segunda é aquela que concebe o acesso à justiça como "acesso à ordem justa".139

Acerca da concepção de "acesso à ordem justa", Marinoni lecionou que:

Melhor é falarmos, então, em acesso à ordem jurídica justa;; acesso à justiça quer dizer acesso a um processo justo, a garantia de acesso a uma justiça imparciall, que não só possibilite a participação efetiva e adequada das partes no processo jurisdicionall, mas que ttambém permita a efettividade da tutella dos direitos, consideradas as diferentes posições sociais e as específicas situações de direito substancial.140

Essa temática ganhou vulto após o "movimento pelo acesso à justiça," que teve como principais expoentes Cappelletti e Garth,141 os quais assim definiram o direito em questão:

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A expressão 'acesso à Justiça' é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico — o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igual acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos.142

Nessa esteira, Cappelletti e Garth destacaram como primordial que o direito de acesso à justiça garanta um sistema jurisdicional acessível e igualitário, bem como que dele decorram resultados justos aos indivíduos e à sociedade.

Consoante o magistério de Cambi, essa concepção representou uma verdadeira "revolução copernicana", visto que, em sua decorrência, "o processo deixa de ser um mero instrumento formal e retórico, para ser concebido como a verdadeira arena, onde se trava a luta por um direito efetivo, não meramente aparente".143

Ainda acerca das consequências do "movimento pelo acesso à justiça", prosseguiu Cambi:

Esse movimento representa uma revolução na medida em que o direito processual deixa de ser analisado somente a partir do pontto de vista dos produtores das normas jurídicas. Procura-se adottar um método diverso que adotta uma postura teleológica, enfocando o sistema processual no contextto das aspirações sociais e polítticas que demandam respostas mais adequadas, céleres e eficientes. Com efeito, essa mudança de perspectiva pretende concentrar suas atenções nos usuários, ou melhor, nos consumidores de justiça.144 [grifos do autor]

No tocante ao Direito Previdenciário, a fim de dar concretude ao preceituado no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988, conforme a perspectiva acima aventada, faz-se necessária a observância das particularidades que envolvem as demandas dessa natureza, sobretudo, em relação às partes que compõem o litígio. A relação processual que ocorre na ação previdenciária se caracteriza por ser notadamente assimétrica: tem-se, em um lado da demanda, o Instituto Nacional do Seguro Social, responsável pela gestão e pela manutenção dos benefícios previdenciários, uma autarquia

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federal dotada de inúmeras prerrogativas processuais, possuidora de um sistema informatizado com dados e informações relevantes para o deslinde da lide; de outro lado, o segurado, dependente da Previdência Social, cidadão comum, na maioria das vezes, carente de recursos financeiros, educacionais e informacionais.145 146 Essas razões é que levam a consubstanciar uma situação característica de vulnerabilidade processual.147

Todas essas peculiaridades refletirão diretamente na instrução probatória previdenciária e no consequente alcance de uma decisão justa. Por essa razão, a preocupação em se construir um direito fundamental à prova em matéria previdenciária compatível com o que se encontra disposto no texto constitucional sobre as regras de acesso à justiça passa pela necessidade de se considerar a situação de vulnerabilidade em que se encontra um dos polos da demanda: o segurado. Esse aspecto poderá ser amenizado com um papel mais ativo por parte do julgador, bem como com a possibilidade de distribuição do ônus probatório, o qual, de certa forma, possibilita o equilíbrio entre as partes em situação de desigualdade processual. Nesse sentido, serão desenvolvidos os tópicos seguintes.

Vulnerabilidade do segurado e acesso à justiça

Conforme já mencionado, para que o direito de acesso à justiça se concretize em sua plenitude, faz-se necessário que os cidadãos tenham suas demandas julgadas pelo Poder Judiciário de modo adequado e efetivo, restando necessário que sejam resguardadas eventuais peculiaridades atinentes às partes, não bastando a simples garantia constitucional de que a prestação jurisdicional esteja igualmente à disposição de todos. Nesse sentido, explicou Tartuce: "Não basta, assim, simplesmente afirmar que a jurisdição se

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encontra à disposição, é essencial viabilizar aos necessitados a transposição dos óbices sociais e económicos que dificultam o acesso a ela".148

Dessa forma, se uma das partes da relação processual se encontrar em situação de vulnerabilidade, tornar-se-á indispensável que sejam criados mecanismos que propiciem seu acesso de modo adequado à tutela jurisdicional, dada a situação de fragilidade de uma das partes, a qual desequilibra a relação. Assim, torna-se explicável que, em algumas searas do Direito, existam legislações protetivas, as quais objetivam o alcance da igualdade e uma consequente decisão justa. Sob essa perspectiva, elucidou Marques, ao referir-se à situação de vulnerabilidade nas relações de consumo:

Poderíamos afirmar, assim, que a vulnerabilidade é...

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