A prova em matéria previdenciária e o direito fundamental ao contraditório

AutorFabiana Pedroso Paz
Páginas93-112

Page 93

A fim de dar continuidade à análise do direito à prova em matéria previdenciária na perspectiva do Direito ao Processo Justo, cumpre realizar a abordagem da instrução probatória previdenciária à luz do direito fundamental ao contraditório. Para tanto, será considerada sua evolução até a sua positivação pelo Novo Código de Processo Civil, em que se manifesta como uma garantia de inegável importância para a consecução de um processo justo, assegurando a participação direta, isonômica e influente das partes na construção da decisão judicial, sendo considerado requisito de validação do direito à prova. Seguindo essa trilha, será analisado o modelo colaborativo de processo adotado pela novel legislação, com a intenção de atentar-se para o dever de colaboração em sede de instrução probatória, o qual se revela como mais um mecanismo de concretização plena do direito fundamental à prova. Por fim, serão tecidas considerações sobre a prova emprestada, cuja observância do direito fundamental ao contraditório constitui requisito indispensável para a sua consecução.

Considerações iniciais sobre o direito fundamental ao contraditório na perspectiva do direito ao processo justo

O direito fundamental ao contraditório, por muito tempo, foi tradicionalmente concebido apenas em sua dimensão estática (ou formal), realizando-se unicamente com a observância do binômio conhecimento-reação, ou seja, uma parte tem o direito de conhecer as alegações feitas no processo pela outra, com a possibilidade de contrariá-las. Nessa linha, o órgão jurisdicional nada tinha a ver com a sua realização, sendo somente os litigantes seus destinatários,226 como assinalou Theodoro Júnior:

A construção cllássica do contraditório se deu à luz de uma visão estática que o confundia simpllesmente com a bilaterallidade da

Page 94

audiência das partes durante a sucessão dos atos do processo. O juiz nele não se imiscuía. Era um simplles espectador do duelo de llitiganttes.227

No entanto, essa concepção foi se alterando, não se mostrando indiferente às circunstâncias e aos valores da época em que exercida.228 229

Após a Segunda Guerra Mundial, iniciou-se uma fase de transição do Estado Social para o Estado Democrático de Direito, com a intenção de consolidar novas conquistas e de evitar que as terríveis experiências voltassem a ocorrer, tendo como principais mecanismos de destaque a submissão do Estado às normas previstas no ordenamento jurídico, a proteção à dignidade da pessoa humana, a soberania popular, a supremacia das normas constitucionais, a efetividade dos direitos fundamentais e a ampliação do conceito de democracia.230

O processo civil, concebido como fenómeno cultural, sofreu forte influência desse novo cenário que se desenhou, passando a impor novas perspectivas para a sua concepção, entre elas, a aspiração de se fazer a Justiça mais acessível e efetiva. Tal aspiração refletiu na grande maioria das Constituições do mundo ocidental, caracterizadas pelo esforço de integrar as liberdades individuais com direitos e garantias de caráter social, "que em essência buscam não só torná-las acessíveis a todos como também assegurar uma real e não meramente formal igualdade das partes em face da lei e na

Page 95

sua atividade concreta processual".231Essas novas aspirações passaram também a influenciar na conformação do direito ao contraditório, como aclarou Álvaro de Oliveira:232

Tal modo de ver reflete-se, indiscutivelmente, no alcance do princípio do contraditório, pois obra com que este ulltrapasse o momento inicial de contraposição à demanda e comece a constituir um atributo inerente a todos os momentos relevantes do processo. Determina assim, uma mudança de sentido, que de modo nenhum pode ser ignorada, instando a que o princípio deixe de ser meramente formal, no intuito de atender aos standards necessários para o estabelecimento de um processo justo, para além de simples requisito técnico de caráter não essencial. [grifo nosso]

Ademais, com a instauração do Estado Democrático de Direito, fez-se necessário que o poder estatal exercido através do emprego do processo demandasse o respeito a valores inerentes à democracia, os quais pressupõem as ideias de participação e representação, conforme observou Reichelt:

A realização de um modelo eficiente de participação democrática na construção da manifestação de poder estatal vertida através do processo demanda daquele que exerce tall poder a consideração das posições externadas pellos demais sujeitos processuais não apenas se pronunciarem no processo, mas devem se sentir representados nas manifestações de poder que delle emanam, que são as decisões do órgão jurisdicional.233

Assim, a participação dos sujeitos processuais no curso do processo tornou-se elemento indissociável para que o poder estatal vertido através do processo alcançasse os ditames dos valores democráticos.

De acordo com essas novas perspectivas, o direito ao contraditório passou a exigir uma renovada compreensão. Dessa forma, coube à doutrina a missão de desempenhar tal tarefa, foi da análise das bases lançadas pela teoria do processo como procedimento realizado em simétrico contraditório que esse direito começou a encontrar consonância adequada ao Estado Democrático de Direito.234

Page 96

Fazzalari foi o primeiro a conceituar o processo como procedimento realizado em contraditório entre as partes,235para quem o "processo é um procedimento do qual participam (são habilitados a participar) aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos: em contraditório, e de modo que o autor não possa obliterar as suas atividades".236Assim, o contraditório deve ser observado ao longo de todo o procedimento, sendo necessária, para a identificação do processo, a existência de participação das partes em contraditório paritário.237

Essa concepção de processo como procedimento em contraditório acaba por afastar a ideia de relação jurídica processual como sendo a única explicação existente para esse fenômeno, conforme explicou Reichelt:

O tradicional retrato angular da relação jurídica processual que une o autor, juiz e réu por força de vínculos juríídicos formando uma figura estática, cede lugar a uma concepção dinâmica na qual os sujeitos processuais se encontram envolvidos em um debate constantte, sempre orientado em conformidade com o ordenamento jurídico, tendo como norte a construção da decisão final. Durante a marcha do processo, convergem todas as atividades desenvolvidas nos autos em uma mesma direção: a construção do quadro de elementos a partir do quall será concebida a sentença. Deixa de ser importante o fato de serem os sujeitos vistos um em rellação ao outro, e ganha llugar uma visão na qual cada um exerce um papel dentro de uma estrutura dialética em constante movimento. Autor e réu deixam de ser apenas atores considerados llado a lado em um retrato estático no qual figuram em oposição secundária em rellação à do magistrado, mas passam a ser vistos como pessoas que exercem funções dentro de uma mecânica destinada à construção conjunta da decisão a ser respeitada por todos.238

No mesmo sentido, também se posicionou Theodoro Junior:

[... ] após a percepção do fenômeno do constitucionalismo no século XX, torna-se inaceitável o entendimento que trabalha com uma separação de papéis dentro da estrutura processual, que de um llado possuiria o juiz como terceiro com acesso privilegiado do que seria o bem comum e de outro com partes que se veriam allijadas

Page 97

do discurso processual, entregando seus interesses juríídicos ao critério de bem comum desse órgão judicial. Não se pode, como já disse, colocar o papel de todos os sujeitos processuais no mesmo plano, mas ao mesmo ttempo, deve-se estabelecer que cada um, no exercício de seu papel, possa influenciar na formação da decisão, garantindo-se debate a ao mesmo ttempo processos mais rápidos. Impõe-se, no moderno Estado Democráttico de Direito, a releitura do contraditório 'como garantia de influência (das partes) no desenvolvimento e resultado do processo'.239

Assim, para a conformação do direito fundamental ao contraditório, não basta a existência da garantia da bilateralidade de audiência, caracterizada pelo binómio conhecimento-reação, devendo haver, também, efetiva participação das partes destinadas a influenciar a formação da convicção do órgão jurisdicional.

O delineamento dessa nova concepção do direito ao contraditório iniciou-se, de forma mais efetiva, por influência da doutrina processual germânica, a qual agregou a inicial garantia formal de bilateralidade da audiência, a possibilidade de influência Einwirkungsmõglichkeit "sobre o conteúdo das decisões e sobre o desenvolvimento do processo, com inexistentes ou reduzidas possibilidades de surpresa".240Acerca dessa nova concepção, The-odoro Junior elucidou que existiria um dever de consulta do juiz, "impondo o fomento do debate preventivo e a submissão de todos os fundamentos (ratio decidendi) da futura decisão ao contraditório. Pelo princípio, estariam asseguradas a igualdade de chances (Chancengleichheit) e igualdade de armas {Waffengleichheit)".241

Seguindo essa trilha, o direito à influência constitui uma verdadeira garantia de vedação às decisões-surpresa, o que implica que o órgão jurisdicional não deve surpreender as partes empregando, em sua decisão, argumentos, mesmo consideráveis de ofício, não discutidos pelas partes.242 Sobre o tema, comentou Theodoro Junior:

Desse modo, o contraditório moderno constitui uma verdadeira garantia de não surpresa que impõe ao juiz o dever de provocar

Page 98

o debate acerca de ttodas as questões, inclusive de conhecimento oficioso, impedindo que em 'solitária...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT