Medida Provisória: Limites da Sua Atuação Impossibilidade de Covalidação de Atos Pretéritos

AutorLucas Rocha Furtado
CargoProfessor na Universidade de Brasília e Sub-Procurador do Ministério Público junto ao TCU.

Com o intuito de tornar mais evidente a importância do tema sob comento, examinar-se-ão a atuação e os limites lógicos de medidas provisórias cotejando-as com uma situação concreta: a suspensão, através de medida provisória, da vantagem pessoal denominada quintos.

Deixe-se assente, no entantom, que o raciocínio aqui desenvolvido é igualmente válido para casos semelhantes, como, por exemplo, a criação, por medida provisória, de contribuições sociais, que, nos termos da Constituição Federal, art. 195, § 6º, somente "poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado". Em não sendo apreciada a medida provisória, é possível, através de sua reedição, serem os efeitos pretéritos da antiga medida provisória convalidados pela nova medida provisória? Os efeitos da medida provisória não aprovada, porém não rejeitada expressamente pelo Congresso Nacional, podem continuar a produzir todos os efeitos jurídicos pretéritos (e.g. a extinção da gratificação denominada quintos) ou futuros (e.g. contagem de tempo de noventa dias necessária para a exigência de contribuições sociais)? A fim de responder a esses questionamentos, cumpre tecer os comentários preliminares a seguir expostos.

2. Breve histórico

Para que se possa adentrar o mérito da questão, urge historiar brevemente a cadeia de atos normativos que regeram, a partir da Lei nº 8.112/90, a incorporação à remuneração dos servidores públicos federais da gratificação pelo exercício de função de direção, chefia ou assessoramento. Nesse sentido, registre-se que a Lei nº 8.911/94, de 11 de julho de 1994, em seus arts. 3º a 11, definiu critérios de incorporação da vantagem de que trata o art. 62 da Lei nº 8.112/90, denominada quintos, que, entretanto, por força das Medidas Provisiórias nº 831, de 18 de janeiro de 1995, e nº 892, de 16 de fevereiro de 1995, teve sua extinção decretada.

A Medida Provisória nº 939, de 16 de março de 1995, por sua vez além de mante a supressão dos quintos, instituiu a figura dos décimos incorporados, cujo termo inicial para a contagem do interstício de um ano, necessário à agregação da vantagem, passou a ser o dia 19.1.94 (art. 9º).

Seguiram-se a Medida Provisória nãoº 968, de 12 de abril de 1995; a Medida Provisória nº 993, de 11 de maio de 1995; a Medida Provisória nº 1.019, de 8 de junho de 1995; a Medida Provisória nº 1.068, de 28 de julho de 1995; a Medida Provisória nº 1.095 de 25 de agosto de 1995; e a Medida Provisória nº 1.127, de 26 de setembro de 1995, que mantiveram, em substância, as disposições contidas na Medida Provisória nº 939/95.

Já a Medida Provisória nº 1.160, de 26 de outubro de 1995, mesmo preservando os décimos incorporados, permitiu, até a data de sua publicação, a concessão ou atualização da parcela de quintos a que o servidor faria jus se vigente a redação original da Lei nº 8.911/94.

As Medidas Provisórias que a sucederam (MP nº 1.195, de 24.11.95; MP nº 1.231, de 14.12.95; MP nº 1.268, de 12.1.96; MP nº 1.307, de 9.2.92; MP nº 1.347, de 12.3.96; e MP nº 1.1389, de 11.4.96), aperfeiçoando a sistemática introduzida pela Medida Provisória nº 1.160/95, estabeleceram critérios diferenciados para a concessão e atualização dos quintos aos servidores que completaram o interstício necessário nos períodos 19.1.94 a 28.2.95 e 1.3.95 a 26.10.95. Àqueles que completaram o interstício legal a partir de 27.10.95 assegurou-se, tão-só, a incorporação dos décimos.

3. A questão proposta

Registre-se que, até a presente data, nenhuma das mencionadas Medidas Provisórias havia sido convertida em lei, nem o Congresso Nacional havia disciplinado as relações jurídicas delas decorrentes, nos termos do parágrafo único do art. 62 da Constituição Federal.

Em face desse quadro e, sobretudo, da prática habitual do Poder Executivo de inserir nas diversas reedições desses provimentos normativos cláusulas convalidadoras dos atos praticados com base em medida provisória predecessora, indaga o ilustre consulente sobre a apicabilidade do direito pretérito, ous seja, das Leis nº 8.212/90 e nº 8.911/94, aos períodos de vigência das medidas provisiórias não apreciadas pelo Poder Legislativo.

Desse modo, o ponto fulcral a ser analisado, so a ótica do 6ambito temporal de validade e de eficácia das normas, diz respeito à interpretação do parágrafo único do art. 62 em conjunto com os comandos contidos nas Medidas Provisórias e nas Leis supramencionadas quando o pazo constitucional de 30 dias tenha transcorrido sem manifestação do Congresso Nacional, seja convertendo em lei o ato legislativo, seja regulando as relações jurídicas delas decorrentes

Adicionalemente, deve ser enfrentado fator complicador atinente à hipótese de reapresentacão de medida provisória contendo dispositivo que pretenda convalidar os atos praticados na vigência da anterior.

4. A origem da medida provisória

O instituto da medida provisória constitui inovação em nosso Direito Constitucionasl. Sua inclusão no texto da atual Lei Maior foi fruto de conflito ideológico estabelecido durante ops trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte que elaborou a Carta Magna de 1988.

Por um lado, buscava-se apagar os resquícios dos métodos utilizados pelo governo de exceção que vigorou no país, entre os quais o uso indiscriminado do decreto-lei. Como ato legislativo originário do Poder Executio, tinha o decreto-lei como peculiaridade a possiblidade de converter-se em lei pelo decurso do prazo de sessenta dias sem deliberação do Parlamento, snedo considerados válidos os atos praticados sob sua vigência, em caos de rejeição.

Por outro, tinha-se presente que a delegação legislativa era - e ainda é - uma das características marcantes do Direito Constitucional hodierno, consequência direta da consolidação do estado Social, que, em oposição ao Estado Liberal, busca regrar e interferir na vida econômica e social do país. Particularmente, é o Poder Executivo, por deter aparato de pdoer diversificado, que lhe permite controlar desde as forças armadas até os órgãos responsáveis pelo controle e planejamento da economia, o depositário natural dessa incumbência legiferante. Particularmente, nos países em vias de desenvolimento, como o Brasil, submetidos a fortes crises econ6omicas e sociais, a possibilidade de produção e normas legais isenta dos óbices naturais dos tradicionais e lentos processos de elaboração legislativa, parece antes medida imprescindível para viabilizar o adequado enfrentamento dessas conjunturas instáveis.

À medida provisória, inspirada no modelo constitucional italiano, que incorpora regime parlamentarista, surge então como proposta harmonizadora das duas vertente. De um lado, ao mesmo tempo em que permite ao Poder Executivo, em caso de relevância e urgência, exercer parcela da competência para criar normas jurídicas gerais, inclusive sem delimitar, como nos decretos-leis, seu campo de incidência material segue, por outro rito elabortaivo sintético, marcado pela predominância do Poder Legislativo, uma vez que o decurso de prazo, agora de 30 dias, não mais carreia a aprovação tácita da matéria, mas sim, a perda de sua eficácia ex tunc, cabendo ao Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes.

O art. 62 da Constituição Federal assim dispõe:

Art. 62. Em, caso de relevância e urgência, o Presidente da república poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las ao Congresso Nacional que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias.

Parágrafo único. As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes.

A compulsão legiferante do Poder Executivo fez-se sentir em pouco tempo. De providência excepicional, passou a edição de medidas provisórias a ser método legislativo rotineiro, alargando-se por um plexo de matérias jamais pelos estudiosos da ciências política e do direito.

A incompatibilidade entre a concepção ideal de medida provisória formulada pela doutrina e sua roupagem factual, moldada pelo evidente descompasso entre a agilidade do Poder Executivo e a imobilidade do Poder Legislativo, deixou evidenciada a deficiência da importação para um regime presidenialista de instituto típico do parlamentarismo. Afinal, nesse último, que incorpora sistema próprio de freios e contrapesos entre os poderes, sujeita-se o Governos, na hipótese de edição de decreti-legge sem necessária base de apoio parlamentar, a uma moção de desconfiança, que pode resultar em eventual queda do Gabinete.

5. O princípio da separação de poderes

A temática da medida provisória como forma de delegação legislativa faz surgir, inevitavelmente, questionamentos a respeito da nova feição que deve guardar o princípio da separação dos poderes, insculpido no art. 2º de nossa Lei Maior.

Já não há falar em rigidez na incomunicabilidade das funções estatais atribuídas aos poderes. A visão originária de MONTESQUIEU mantém-se, apenas, como fio condutor de um novo modelo que prestigia, sob certa medida, a interpretação das esferas de competência dos diversos Poderes da República.

Se a abordagem meramente política da questão refoge ao escopo do presente...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT