A psicofarmacologização da infância e o modelo de ação da droga centrado na doença

AutorSandra Caponi
Páginas204-241
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2020.e74538
204204 – 241
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A psicofarmacologização da infância
e o modelo de ação da droga
centrado na doença
Sandra Caponi1
Resumo
A prescrição e a ampla aceitação do uso de antipsicóticos clássicos e atípicos na infância e na
adolescência foi reivindicada aduzindo a suposta função terapêutica e curativa dessas drogas.
Tomando como ponto de partida a distinção de dois modelos explicativos de ação dos psico-
fármacos, um centrado na doença e outro centrado na droga, analiso de que modo a indústria
farmacêutica contribuiu, com suas estratégias publicitárias, com a divulgação de uma narrativa
triunfalista que naturalizou o uso de antipsicóticos como cura para doenças psiquiátricas. Os dois
psicofármacos analisados são a clorpromazina, um antipsicótico clássico, e a risperidona, um
antipsicótico atípico de última geração.
Palavras-chave: Antipsicóticos clássicos. Antipsicóticos atípicos. Infância. Indústria farmacêu-
tica. Medicalização.
1 O modelo centrado na doença e o modelo
centrado na droga
Proponho analisar aqui o alcance de dois modelos explicativos da
ação das drogas psiquiátricas identicados por Joanna Moncrie (2008).
As duas estratégias explicativas são: o modelo centrado na doença e o mo-
delo centrado na droga. O primeiro modelo parte da identicação da psi-
quiatria com a medicina geral, supõe a existência de uma doença biológica,
uma alteração orgânica que os fármacos poderiam reverter completamente
1 Professora titular do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Pesquisadora de CNPq. E-mail: sandracaponi@gmail.com.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 19 - Nº 46 - Set./Dez. de 2020
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ou, então, anular a constelação de sintomas que a denem. Esse é o mo-
delo defendido pelo NIMH, e particularmente por Insel (INSEL, 2010).
De acordo com esse modelo, os psicofármacos têm uma forma de ação
idêntica aos outros medicamentos, cuja função seria, como ocorre com os
antibióticos, reverter as causas orgânicas da doença, ou, como ocorre com
os analgésicos, controlar os sintomas de uma alteração orgânica.
No caso dos psicofármacos, esse modelo arma que as drogas teriam a
função de restabelecer o equilíbrio neuroquímico que se encontra alterado
em diversos transtornos psiquiátricos. É por essa razão que vários auto-
res, no momento da aparição da primeira droga psiquiátrica descoberta
em 1954, a clorpromazina, estabeleceram uma analogia entre a descoberta
dessa substância e a da penicilina. Essa analogia foi substituída hoje por
outra, mais utilizada e repetida, que parece ser também mais apropriada: a
identicação entre a ação dos psicofármacos e a insulina. Aqui já não se faz
referência a uma doença infecciosa que pode ser denitivamente curada,
mas a uma doença como a diabetes, considerada crônica e que exige um
tratamento contínuo.
Um exemplo de medicina que os psiquiatras costumam citar, num esforço para reforçar o
modelo centrado na doença, é o uso de insulina para a diabetes. Ao substituir a diculdade
do corpo de produzir o hormônio da insulina, a terapia com insulina de substituição ajuda
a restabelecer o corpo para o estado normal. Mesmo os tratamentos sintomáticos, como
os analgésicos, atuam de maneira focada na doença, porque produzem seus efeitos neu-
tralizando alguns dos processos siológicos que produzem a dor. (MONCRIEFF, 2013c).
De acordo com esse modelo, os psicofármacos agiriam equilibrando
um sistema nervoso doente ou anormal. Assim, os efeitos desejados dos
psicofármacos são aqueles que revertem o processo da doença e seus sin-
tomas manifestos. São considerados como efeitos secundários, colaterais e
indesejados, os efeitos produzidos pelo fármaco que não estão diretamente
vinculados à desaparição dos sintomas, por exemplo, lentidão psicomoto-
ra, confusão mental, insônia, aumento de apetite e de peso, dentre outros.
Porém, o sustento epistemológico desse modelo explicativo centrado
na doença é extremamente frágil. Isso ocorre porque não existem estudos
cientícos conáveis que nos permitam entender as causas neuroquímicas
ou genéticas das doenças psiquiátricas. Não conhecemos as redes causais
A psicofarmacologização da infância e o modelo de ação da droga centrado na doença | Sandra Caponi
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que explicariam quais são as alterações cerebrais ou os desequilíbrios neu-
roquímicos que constituem a etiologia das patologias psiquiátricas. Não
existem estudos de laboratório com modelos animais que possam ser con-
siderados conclusivos, não existem imagens cerebrais nem estudos com-
parativos que indiquem uma diferença entre o nível de dopamina de um
sujeito diagnosticado com esquizofrenia e um sujeito saudável.
Moncrie (2013c) opõe a esse modelo, que classicamente dene o
uso de fármacos em diferentes ramos da medicina geral, outra abordagem
que denomina como “modelo centrado nas drogas”. Trata-se de um mo-
delo que se aplica exclusivamente aos psicofármacos, pois não pode ser
transposto para os medicamentos utilizados em outros campos da medici-
na. De acordo a este modelo as drogas psiquiátricas, longe de corrigir um
estado anormal ou restabelecer um equilíbrio neuroquímico perdido, têm
a função de induzir alterações cerebrais, produzindo um estado anormal
ou alterado. Para Moncrie, as drogas psiquiátricas têm um modo de ação
com base na intoxicação cerebral, do mesmo modo que ocorre com outras
substâncias psicoativas, como o álcool, a heroína, o ópio ou outras drogas
de uso recreativo. Nesse modelo não existe referência a uma doença espe-
cíca, nem a um conjunto de sintomas, pois essas drogas têm uma ação
semelhante para qualquer consumidor, independentemente de ele ter ou
não um diagnóstico psiquiátrico.
Isso é o que ocorre, por exemplo, com estimulantes como a Rita-
lina®. O modelo centrado na doença arma que o metilfenidato pode
restabelecer um equilíbrio neuroquímico, especicamente em relação a
uma diminuição dos níveis de dopamina, serotonina ou noradrenalina
no Sistema Nervoso Central, que seria a causa hipotética do Transtorno
de Décit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Porém, é possível ob-
servar que essa droga age do mesmo modo e tem os mesmos efeitos, tanto
em crianças e adolescentes diagnosticados com TDAH, como naqueles
que não têm diagnóstico psiquiátrico e simplesmente desejam aumentar
seu poder de concentração, por exemplo, antes de um exame. Isso ocorre
porque, de acordo com Moncrie (2013c), Breggin (2008), Whitaker
(2010), dentre outros, as drogas psiquiátricas, do mesmo modo que a co-
caína, exercem seus efeitos, ainda que de modo diferente, sobre qualquer

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