Psicologia social, trabalho e cooperativismo

AutorFábio de Oliveira
Ocupação do AutorProfessor do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Páginas19-36

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A psicologia como um todo e a psicologia social, em particular, consolidaram, ao longo de suas histó rias, tradições muito diferentes de apreensão do trabalho como objeto. De fato, não se pode falar de uma psicologia do trabalho divida em partes que se complementariam ou, menos ainda, de uma psicologia do trabalho formada por teorias concorrentes a disputar o mesmo objeto9. Mais adequado seria dizer que a psicologia aproximou-se do trabalho de diferentes formas, partindo de diferentes lugares, construindo diferentes objetos, elegendo diferentes problemas, assumindo compromissos diversos e vendo descortinar-se diante de si campos de ações possíveis irredutíveis uns aos outros.

Se há uma tradição de aproximação do trabalho criada por uma psicologia preocupada com a gestão de empresas - informada pela administração e pela engenharia, até um certo momento, e buscando questões próprias depois (Malvezzi, 1995), mas ainda preocupada com questões ligadas à gestão -, também vimos surgir outras tradições pelas quais essa aproximação ocorreu.

Já se observa, por exemplo, uma produção consistente de uma psicologia do trabalho cujo foco é a saúde dos trabalhadores e que é informada pelas ciências sociais em saúde e pelo campo interdisciplinar da saúde coletiva (por exemplo: Nardi, 1999; Sato, 1996, 2001, 2002; Scopinho, 2003).

Também construiu-se uma psicologia social preocupada com temas que poderíamos denominar "marginais" e que não se reduziam nem às questões de gestão de pessoas nem às questões da saúde daqueles que trabalham. Temas os mais diversos, como os processos cotidianos no trabalho, a ação política dos trabalhadores, o desemprego, a vida fora da fábrica, compõem o escopo daquilo que só mais recentemente passou-se a denominar como psicologia social do trabalho.

Esses três exemplos de aproximações da psicologia em relação ao trabalho não esgotam todas as manifestações conhecidas desse encontro, mas sua menção é suficiente para reivindicar a peculiaridade de uma psicologia social que toma como seu objeto o trabalho.

No que diz respeito ao escopo desta pesquisa, temos assistido ao crescente interesse de muitos psicólogos sociais do trabalho pelos temas do cooperativismo e da economia solidária10. Diversas são as razões para isso.

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Peter Spink (2003b), ao analisar "exemplos de processos autóctones em partes diferentes do país onde pessoas agem coletivamente na busca de soluções" para seus problemas em comum, afirma:

"Para explicá-los é necessário reconhecer a validade do pressuposto que nascemos em comunidade, nas socialidades e materialidades do dia a dia cujas linguagens de ação são repletas de palavras organizativas de uso constante; formando uma referência contínua à nossa competência coletiva. Há inúmeras lutas pela hegemonia sobre estas noções organizativas, mas elas fazem parte da competência coletiva - não há dúvida. Nascer em comunidade é presumir uma capacidade coletiva de autogestão, que antecede e prescinde de um governo ou um Estado" (p. 6, itálicos nossos).

Muitos estudos em psicologia social do trabalho têm procurado chamar a atenção para esse tipo de capacidade auto-organizativa dos trabalhadores (P. Spink, 1996, 2003b; Sato, 1999) que se manifesta em diferentes dimensões de suas vidas, incluindo a vivência coletiva nas empresas tradicionais, mesmo considerando-se a existência da gerência profissional (capacidade que passa mesmo a interessar à gestão flexível do trabalho com o advento do toyotismo). As cooperativas são, por seu turno, um contexto interessante para a compreensão desse fenômeno em outras condições muito favoráveis, já que a auto-organização não está à margem, mas no centro do seu acontecer organizacional.

Nesse mesmo sentido, as cooperativas também são espaços de sociabilidade que podem fortalecer tipos de relações sociais não hegemônicas. O cooperativismo é uma forma de organização do trabalho, uma proposta de intervenção sobre problemas sociais, é parte de políticas públicas e envolve formas de interpretação da realidade. É, antes de tudo, um espaço de experimentação social. A preocupação com todas essas questões tem trazido para o diálogo com as cooperativas psicólogos sociais que se dedicam ao estudo do trabalho.

Nesse diálogo, há muitas vozes diferentes. Mas podemos identificar uma característica em comum importante entre elas: a compreensão das organizações, não como estruturas estáveis, mas como processos dialógico-discursivos cotidianos.

Na verdade, tanto o interesse pela capacidade auto-organizativa autóctone das pessoas no seu dia a dia, quanto a compreensão das organizações humanas como processos fazem parte de uma mesma mirada em relação aos fenômenos sociais locais: quando se admite que as organizações não são estruturas apenas ocupadas pelas pessoas, mas que são os processos cotidianos conduzidos por elas que dão forma àquilo que se manifesta como sendo a organização (P. Spink, 1996), deve-se reconhecer, como apontado acima, que a existência em comunidade pressupõe de antemão a capacidade para agir coletivamente (P. Spink, 2003b).

Esse foi o nosso ponto de partida para a pesquisa. O processo de investigação exigiu uma série de articulações conceituais para a sua consecução. Tentaremos agora esclarecer esse caminho teórico percorrido.

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1. Relações de trabalho, heterogestão e autogestão

As relações de trabalho referem-se tanto às relações entre trabalhadores, quanto entre esses e seus empregadores ou aqueles que utilizam seus serviços. De um ponto de vista mais abrangente, são as relações estabelecidas entre atores sociais ou grupos sociais no interior das atividades produtivas - as relações entre aqueles que "vendem" força de trabalho, aqueles que a compram e a interferência de possíveis mediadores, como o Estado e a regulação que exerce com base em um marco legal. As relações de trabalho não se explicam, portanto, apenas pelos papéis desempenhados por aqueles que se encontram nos ambientes de trabalho: as pessoas trazem para dentro da fábrica suas diferentes inserções sociais e de classe - como ser proprietário dos meios de produção ou ter apenas o próprio corpo como objeto para negociação.

Em Sobre os fundamentos filosóficos do conceito de trabalho da ciência econômica, Herbert Marcuse, ao tecer comentários sobre a divisão social do trabalho - isto é, a apropriação de determinadas atividades por grupos, classes ou profissões -, aponta para a relação fundamental entre dominação e servidão na sociedade capitalista e a correspondente oposição entre o trabalho dominante e o trabalho dominado (Marcuse, 1998). Dominante é o fazer daquele que dispõe de objetos e de pessoas. Dominado é o fazer daquele que é orientado por disposições. Falar em trabalho dominante e trabalho dominado é falar das disparidades de poder nas relações de trabalho e das experiências de submeter, ser submetido, resistir e rebelar-se.

Pierre Clastres (1978), em seu seminal livro A sociedade contra o Estado, oferece-nos ferramentas conceituais importantes que podem ser úteis para uma reflexão acerca dessas relações de poder.

Ao analisar a chefia indígena em sociedades sul-americanas, o antropólogo expõe de modo radical as relações entre as sociedades ou grupos e as instâncias de poder que constituem. Em síntese, a função política, em suas palavras, é exercida "não a partir da estrutura da sociedade e conforme ela, mas a partir de um mais além incontrolável e contra ela" (p. 33, itálicos nossos).

Assim como a natureza se impõe aos seres humanos como um outro implacável que limita as possibilidades daquilo que se pode ser e fazer (e ao mesmo tempo constitui aquilo que é o "humano"), as instâncias de poder também se apresentam como formas de coerção em relação à sociedade ou ao grupo, na medida em que impõem limites para a sua ação.

O poder, portanto, instaura-se e constitui-se como exterioridade em relação ao grupo. Isto é, os indivíduos que ocupam esses papéis, na medida em que as instâncias de poder se opõem ao grupo, passam a não fazer parte deste último. Ou, dito de outro modo, as relações que se estabelecem entre os membros do grupo são distintas daquelas que esses membros estabelecem com seus chefes, líderes, governantes, algozes.

Isso pode ser pensado em vários contextos. O pequeno aluno, por exemplo, ao qual se delega a tarefa de anotar os nomes dos colegas que não se comportam

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segundo as expectativas da professora que se ausenta da classe, deixa, de certo modo, de fazer parte do grupo. Como aquela que foi investida de uma autoridade de poder, essa criança está contra o grupo. Sua presença constrange os demais e a relação que passa a ser estabelecida entre ela e as outras difere em profundidade da relação que se estabelecia antes. Ou, então, o chefe, cuja chegada pode inibir conversas descontraídas dos operários na fábrica.

Como exterioridade, a autoridade política é um outro que governa o grupo. E essa é justamente a base da heterogestão, isto é, o governo de uns por outros que já não se reconhecem mais nos primeiros. Heterogestão ou heteronomia, palavras que se referem etimologicamente à lei ou às determinações que vêm de fora, de um outro que não os próprios em sua vida em comum.

A heterogestão é um dos elementos básicos que constituem as relações de trabalho nas sociedades capitalistas. Ela está expressa na separação entre empreendedores e produtores, isto é, na separação entre aqueles que tomam a iniciativa de constituir o empreendimento econômico e aqueles cujo trabalho, convertido na mercadoria mão de obra, é aplicado para que os objetivos do empreendimento - portanto, a vontade daquele que empreende - se concretizem.

Essa separação também define as fronteiras dentro das quais as pretensões de participação dos trabalhadores na empresa "tradicional" podem chegar: no limite, as decisões referentes à...

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