Quatro constituições inconstitucionais e suas fundações democráticas

AutorRichard Albert
CargoWilliam Stamps Farish Professor da University of Texas at Austin. E-mail: richard.albert@law.utexas.edu. Pelos comentários em um rascunho anterior, agradeço a Joshua Braver, Fruzsina Gárdos-Orosz, András Jakab, Kim Lane Scheppele, Holger Spamann, Zoltán Szente e Mila Versteeg. Também foram importantes os feedbacks e as críticas construtivas de...
Páginas13-47
16º Edição - RED|UnB | 13
QUATRO CONSTITUIÇÕES
INCONSTITUCIONAIS E SUAS FUNDAÇÕES
DEMOCRÁTICAS1
Richard Albert2
O fascínio provocado pelo fenômeno global das emendas
constitucionais inconstitucionais suscitou a questão: constituições podem
ser inconstitucionais? Declarar uma constituição inteira inconstitucional
parece diferir em tipo e em grau da declaração de inconstitucionalidade
de uma única emenda que viole o cerne de uma constituição, o que já
é uma ação extraordinária. Neste artigo, exemplico e analiso quatro
diferentes concepções de uma constituição inconstitucional. Cada
concepção é extraída de uma constituição atualmente em vigor ao redor
do mundo, nomeadamente as constituições do Canadá, do México, da
África do Sul e dos Estados Unidos. Apesar da inconstitucionalidade
em diferentes sentidos do conceito, cada constituição está fundada em
princípios democráticos. A força desses fundamentos, no entanto, varia
em cada caso.
I- Uma Constituição Inconstitucional?
O mais fascinante conjunto de questionamentos em direito
público comparado hoje é se, com base em quê, e por quem uma
emenda constitucional pode ser declarada inconstitucional3. Em alguns
1 Tradução de Matheus de Souza Depieri e Pedro Gonet Branco (Editores-chefes da RED|UnB). O
original aparece em: Albert, Richard. Four Unconstitutional Constitutions and their Democratic
Foundations. 50 Cornell International Law Journal 169 (2017).
2 William Stamps Farish Professor da University of Texas at Austin. E-mail: richard.albert@law.
utexas.edu. Pelos comentários em um rascunho anterior, agradeço a Joshua Braver, Fruzsina
Gárdos-Orosz, András Jakab, Kim Lane Scheppele, Holger Spamann, Zoltán Szente e Mila Versteeg.
Também foram importantes os feedbacks e as críticas construtivas de participantes de workshop
na Faculdade de Direito do Boston College, na Academia Húngara de Ciências e na Faculdade de
Direito da Universidade de Chicago. Agradeço à equipe do Cornell International Law Journal, entre
eles Rachael Hancock, Zack Feldman e Natalia San Juan, pelas valiosas contribuições editoriais a este
artigo. Agradeço ao generoso apoio do Fundo Nicholson da Faculdade de Direito do Boston College.
3 Para relatos recentes sobre o tema, Cf. Yaniv Roznai, Unconstitutional Constitutional Amendments:
e Limits of Amendment Powers (2017); Richard Albert, Amendment and Revision in the Unmaking
of Constitutions, in Edward Elgar Handbook on Comparative Constitution-Making (David Landau &
Hanna Lerner, eds., 2017); Richard Albert, e Unamendable Core of the United States Constitution,
in Comparative Perspectives on the Fundamental Freedom of Expression (Andraás Koltay, ed.,
2015); Rosalind Dixon & David Landau, Transnational Constitutionalism and a Limited Doctrine of
Unconstitutional Constitutional Amendment, 13 INT’L J. CONST. L. 606 (2015); Yaniv Roznai, e
eory and Practice of “Supra-Constitutional” Limits on Constitutional Amendments, 62 I NT’L &
14 | RED|UnB - 16º Edição
países, como na Índia, Supremas Cortes ou Tribunais Constitucionais
desenvolveram a doutrina da “estrutura básica” para invalidar, no âmbito
do direito material, emendas constitucionais que cumpriam com todos os
requisitos formais para uma mudança constitucional.4 Em outros países,
como na Turquia, o texto constitucional só permite que os tribunais
superiores analisem a constitucionalidade de emendas que apresentam
defeitos procedimentais.5 Há países, como a França, em que a prevalência
da soberania popular valida quaisquer emendas constitucionais
que satisfaçam aos requisitos formais previstos na constituição e,
consequentemente, não reconhecem a possibilidade de que emendas
constitucionais possam ser inconstitucionais.6
A análise da constitucionalidade de emendas provoca um conjunto
igualmente fascinante de questionamentos – que, embora similares,
distinguem-se das questões anteriores – sobre se, com base em quê
e por quem uma constituição pode ser declarada inconstitucional.7 Os
dois conjuntos de questões estão relacionados na medida em que ambos
devem superar a mesma objeção à ideia de que não existem fundamentos
democráticos para a declaração de inconstitucionalidade de uma emenda.8
São diferentes, contudo, tanto em grau quanto em tipo, uma vez que a
possibilidade de declarar uma constituição inteira inconstitucional atinge
mais intimamente o núcleo do conceito de democracia constitucional
e os requisitos democráticos que legitimam a criação de uma nova
constituição. Embora existam argumentos razoáveis para invalidar certas
emendas constitucionais por defeitos formais, materiais ou híbridos9, não
COMP. L.Q. 557 (2013); Carlos Bernal, Unconstitutional Constitutional Amendments in the Case
Study of Colombia: An Analysis of the Justication and Meaning of Constitutional Replacement
Doctrine, 11 INT’L J. CONST. L. 339 (2013); Gábor Halmai, Unconstitutional Constitutional
Amendments: Constitutional Courts as Guardians of the Constitution?, 19 Constellations 182 (2012);
Aharon Barak, Unconstitutional Constitutional Amendments, 44 ISR. L. REV. 321 (2011).
4 Cf. Minerva Mills Ltd. v. Union of India, (1981) 1 SCR 206; Kesavananda Bharati Sripadagalvaru v.
Kerala, (1973) 4 SCC 225 (India); Golaknath v. State of Punjab, (1967) 2 SCR 762.
5 Constituição da Turquia., pt. IV, tit. I, art. 178(1)–(2) (1982).
6 Decisão da Corte Constitucional No. 92-312DC, Sept. 2, 1992, Rec. 76 (Fr.). O mesmo vale nos Estados Unidos no
que diz respeito à constituição federal. Cf. Richard Albert, Nonconstitutional Amendments, 22 CAN. J. L. & JURIS.
5, 32– 38 (2009) (embora não necessariamente quanto às constituições dos estados subnacionais). Cf. Richard Albert,
American Exceptionalism in Constitutional Amendment, 69 ARK. L. REV. 217 (2016).
7 O mais importante é o artigo de Gary Jacobsohn sobre a inconstitucionalidade na Índia e na Irlanda, apesar de ele
tratar mais propriamente de emendas constitucionais inconstitucionais que de constituições inconstitucionais. Cf.
Gary Jacobsohn, An Unconstitutional Constitution? A Comparative Perspective, 4 INT’L J. CONST. L. 460 (2006).
8 Para uma das doutrinas e justicações teóricas mais importantes quanto à declaração de
inconstitucionalidade de emendas constitucionais no contexto especíco da Constituição indiana,
Cf. Sudhir Krishnaswamy, Democracy and Constitutionalism in India: A Study of the Basic Structure
Doctrine 164–229 (2009).
9 Em outro artigo, desenvolvi esses três fundamentos para se invalidar uma emenda constitucional.
Cf. Richard Albert, e eory and Doctrine of Unconstitutional Constitutional Amendment in
16º Edição - RED|UnB | 15
há um roteiro bem denido para a declaração de inconstitucionalidade de
uma constituição inteira.
A hipótese de uma constituição inconstitucional corre o risco de
ser mal-entendida como implausível, sacrílega ou subversiva. Um jurista
estritamente formalista poderia questionar como uma constituição
que fora propriamente raticada estaria em condições de ser declarada
inconstitucional. Em uma perspectiva de veneração da constituição, a
alegação de sacrilégio baseia-se na descrença de que a nossa constituição
pudesse ser inconstitucional. Uma visão fundacionalista, por outro
lado, pressupõe a constitucionalidade da constituição porque todas
as outras leis derivam dela; sem uma constituição válida, não há fonte
geradora de normas, o que é incogitável. Contudo, nenhuma dessas três
respostas é satisfatória – consideradas individualmente ou em conjunto
– para impedir que uma emenda seja considerada inconstitucional,
como se vê na realidade das cortes, que comumente invalidam emendas
constitucionais.10 No passado, invalidar uma emenda por violar o cerne
da constituição era uma ação extraordinária, mas a crescente frequência
dessas ações tornou a declaração de inconstitucionalidade de emendas
algo relativamente comum na vida constitucional.
Evidentemente, uma constituição ctícia11 é inconstitucional no
sentido liberal democrático12, é uma patologia que recorda o problema
de constituições que não se fundam na cultura do constitucionalismo.13
Meu interesse aqui, no entanto, está nas constituições democráticas.
Nosso ponto de partida é a multiplicidade de signicados de
inconstitucionalidade, conceito que ao mesmo tempo completa e compete
com os eixos de formalidade constitucional, valores constitucionais,
democracia constitucional e legitimidade constitucional. Neste artigo,
desenvolvo esses diferentes signicados de inconstitucionalidade
para ilustrar quatro concepções de constituição inconstitucional. Cada
concepção foi extraída da experiência de quatro tradições constitucionais,
cada qual com a atual constituição codicada: as constituições do Canadá,
do México, da África do Sul e dos Estados Unidos. O que se extrai disso
não é que essas constituições devem ser declaradas inconstitucionais,
Canada, 41 QUEEN’S L.J. 153, 182–203 (2015).
10 Cf. Yaniv Roznai, Unconstitutional Constitutional Amendments - e Migration and Success of a
Constitutional Idea, 61 AM. J. COMP. L. 657, 670–710 (2013).
11 (N.T.) “Sham Constitution”.
12 Cf. David S. Law & Mila Versteeg, Sham Constitutions, 101 CAL. L. REV. 863, 880 (2013).
13 Cf. Richard Albert, e Cult of Constitutionalism, 39 FLA. ST. U. L. REV. 373, 382–83 (2012); Qianfan
Zhang, A Constitution Without Constitutionalism? e Paths of Constitutional Development in
China, 8 INT’L J. CONST. L. 950 (2010) (analisa esse fenômeno na China).

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT