Quem é ‘O Povo’? Sobre o Sujeito Impossível da Democracia

AutorJames D. Ingram
CargoProfessor de Ciência Política, McMaster University
Páginas98-118
* Professor de Ciência Política, McMaster University. E-mail: jingram1@gmail.com
Direito, Estado e Sociedade n.39 p. 98 a 118 jul/dez 2011
Quem é ‘O Povo’? Sobre o Sujeito
Impossível da Democracia
James D. Ingram*
Na teoria democrática, as crises consideradas mais profundas geral-
mente são aquelas que disputam a def‌inição de comunidade, questionando
a própria identidade deste ‘povo’ que autoriza todas as ações e decisões
políticas of‌iciais. Além disso, todo historiador da democracia sabe que de-
mocracias são quase sempre produto de crises, entram periodicamente em
crise e podem, inclusive, amadurecer e benef‌iciar-se delas, uma vez que, a
partir delas, são forçadas a se redef‌inir de forma mais inclusiva. Neste arti-
go, primeiramente, sugiro que, se a incerteza sobre a identidade do ‘povo’
representa uma crise para a democracia, de certa forma, a crise é, mesmo
que freqüentemente ocultada, o estado de normalidade da democracia. A
pergunta é: o que fazer a partir disso? Em que aspecto uma crise do ‘povo’ é
perigosa e em que aspecto ela é uma oportunidade? Apontarei que mesmo
que muitas perspectivas reconheçam a impossibilidade do ‘povo’ ser per-
feitamente representado, entretanto, persistem nesta tentativa de diferentes
formas. E apresentarei uma alternativa, uma visão provavelmente menos
familiar, segundo a qual a crise do ‘povo’ é não somente uma oportunida-
de, mas a própria essência da democracia.
O teórico da democracia e da história das idéias, Pierre Rosanvallon,
servirá de guia para este artigo. Ele será o guia, e não o objeto desta pes-
quisa, porque seu trabalho é usado de três diferentes formas, todas rela-
tivamente indiretas e nenhuma precisamente exegética. Como ponto de
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Sobre o Sujeito Impossível da Democracia
partida, tomo o título por ele utilizado para o segundo volume de sua
magistral trilogia sobre a história da cidadania e da democracia na França
moderna, Le peuple introuvable – O Povo Inencontrável1. Com este título
ele anuncia as lentes com as quais examinará as tentativas de se formarem
instituições que possam dar contorno ao ‘povo’, e mais especif‌icamente, as
repetidas tentativas de se encontrar um ‘povo’ que teimosamente resiste em
ser localizado. Assim, o título carrega um argumento: esse ‘povo’ em que
a soberania popular se baseia e para o qual todas as tentativas de institu-
cionalização da democracia devem dar voz, não pode ser encontrado. Esta
idéia, de que certo tipo de crise é essencial para a vida e saúde da demo-
cracia, deriva de Claude Lefort e será exposta primeiramente, seguida da
sugestão de algumas de suas ramif‌icações.
Todavia, especif‌icar como e porque ‘o povo’ pode ser ilusório implica
somente em restringir o problema, não em resolvê-lo. Por isso, diversas in-
terpretações, com implicações políticas divergentes, podem ser formuladas
a partir do entendimento estritamente negativo de que “o povo” não pode
ser encontrado. No segundo momento, Rosanvallon é utilizado como um
guia, no mais literal dos sentidos, uma vez que em seu papel de historiador
das idéias – ele diria, ‘historiador do político’ 2 – ele pesquisou versões de
muitas dessas posições no percurso de suas vastas histórias da democracia
na França. Com base nisso, aproveitando similaridades e diferenças em
relação a referências mais conhecidas, três grandes vertentes de respostas
à inacessibilidade do povo serão diferenciadas: a liberal, a associativa e a
participativa-radical. Apesar de todas as diferenças, sustento que possuem
algo em comum: diante de um objeto que é ao mesmo tempo necessário e
muito difícil, talvez impossível de ser encontrado, essas respostas tentam
localizar alguma versão sua ou erigir algo que possa tomar seu lugar.
No terceiro e último momento, será proposta uma alternativa a estas
tentativas de compensar a inacessibilidade do ‘povo’. Ao invés de tratar o
problema do ‘povo’ como um problema a ser solucionado, considero aqui-
lo que pode ser visto como a ‘crise’ da representação democrática, como
algo potencialmente construtivo. De acordo com Rosanvallon, a tendência
mais relevante nas democracias contemporâneas é a rejeição pelo ‘povo’
dos instrumentos desenvolvidos para representá-lo. Levando adiante e
1 ROSANVALLON, 1998.
2 ROSANVALLON, 2003.

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