A questão das reservas estatutárias e as idiossincrasias do mercado de ações brasileiro

AutorBruno Robert
Páginas67-110

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1. Introdução

De acordo com o art. 202, § 6o, da Lei das Sociedades por Ações, "[o]s lucros não destinados nos termos dos arts. 193 a 197 deverão ser distribuídos como dividendos".1

O comando legal é simples. Determina que os lucros apurados pela companhia devam ser distribuídos aos sócios a menos que possuam destinação específica que atenda aos parâmetros legais. Ou seja, a distribuição é a regra. A retenção dos lucros é a exceção.

Para que administradores ou controladores decidam pela retenção dos lucros sociais é preciso respeitar as regras e limites dispostos nos arts. 193 a 197 da Lei das Sociedades por Ações.

Em alguns casos, aliás, a retenção é obrigatória. Não está sujeita à discriciona-riedade dos administradores ou maioria as-semblear, embora sempre dependa de expressa previsão legal.

Assim, o art. 193 da Lei das Sociedades por Ações disciplina a constituição da reserva legal, que é obrigatória, nos termos desse dispositivo.

O art. 194, objeto da preocupação deste estudo, trata das reservas estatutárias, que são produtos da vontade da maioria dos sócios, seja em sua criação, seja em seu preenchimento e utilização.

Os arts. 195, 195-A, 196 e 197 regulam as reservas assembleares. São elas, respectivamente: a reserva para contingências, a reserva de incentivos fiscais, a reserva especial para cumprimento de orçamento de capital e a reserva de lucros a

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realizar. A existência das reservas assem-bleares não depende de previsão estatutária, mas apenas de mera decisão assem-blear que determine a versão de lucros do exercício a elas, atendidos aos parâmetros legais.

Embora lidem com utilizações distintas do lucro social, os arts. 193 a 197 convergem em objetivos comuns, que são o de tornar previsível a retenção dos lucros sociais, assegurar a pertinência da utilização dos lucros retidos e possibilitar a fiscalização do uso desses lucros pelos administradores e controladores.

Exatamente no mesmo sentido estão também as disposições dos arts. 189, 190, 192, 198, 199, 202 e 203.

Tomado em conjunto, portanto, o Capítulo XVI da Lei das Sociedades por Ações forma um todo coerente, fundamentado no princípio de que o acionista, parte no contrato de sociedade, é o titular dos frutos do empenho de seu esforço individual, de seu capital e de sua sujeição aos riscos da atividade empresarial.

O poder do acionista de fruição plena dos lucros sociais é parte da essência do contrato de sociedade, na medida em que o lucro, nas suas mais diversas corporifica-ções, é a razão única e integral que move as partes a formarem o contrato de sociedade para se engajarem em determinada atividade empresarial.2

Eventuais limitações a esse poder do acionista sobre os frutos da atividade empresarial devem necessariamente se basear na proteção ao interesse social, que, como soma dos interesses individuais que orbitam a estrutura societária, é o único valor capaz de superar o interesse individual do sócio.3

Em reconhecimento tanto da titulari-dade primária do acionista sobre o lucro, quanto da necessidade de proteção ao interesse social, a Lei das Sociedades por Ações prevê graus distintos de flexibilidade entre as diversas alternativas para retenção dos lucros sociais.4

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Nos extremos do espectro estão, de um lado, a distribuição de dividendos e, de outro, as destinações obrigatórias do lucro do exercício (arts. 189 e 193).5 Intermediaria-mente se encontram a destinação de lucros para as reservas estatutárias e a destinação de lucros para as reservas assembleares, sendo estas relativamente mais flexíveis do que aquelas.

Dessa maneira, a Lei das Sociedades por Ações procurou manter devidamente tuteladas as diversas situações e interesses envolvidos na utilização do lucro social. Todo o lucro social deve, em princípio, ser distribuído aos acionistas. No entanto, para aquilo que o legislador entendeu como primordial à proteção do interesse social,6 foram criadas retenções obrigatórias. E para aquilo que o legislador entendeu que ape-nas a confluência das vontades dos acionistas e administradores poderia ser capaz de determinar como mais adequado à proteção do interesse social, em determinado caso e momento, foram criadas as retenções discricionárias.7

Em qualquer dos casos, porém, a regra permanece: o lucro social é primordialmente do acionista; qualquer retenção deve ser previsível, pertinente e fiscalizável.

Realidade essa também reconhecida há muito pela Comissão de Valores Mobiliários8 e que atende perfeitamente à sensibilidade econômica que permeia a disputa pelo fluxo de caixa livre entre os diversos centros de interesse que povoam a estrutura societária.

Os incentivos e benefícios da utilização do lucro social podem ser bem diversos quando examinados a partir dos pontos de vistas dos administradores ou dos controladores ou dos acionistas minoritários ou dos credores ou do governo ou dos empregados, sendo que, na disputa pelo controle da destinação do lucro social, administradores e controladores possuem evidente vantagem por deterem a totalidade das informações referentes à sociedade e por comandarem as deliberações assembleares.

Tanto é assim que, para assegurar o pleno atendimento dos objetivos originais

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pretendidos pela Lei das Sociedades por Ações, a reforma de 2001 precisou incluir o § 6° ao art. 202 para tornar inquestionável o que o sistema da lei já deixava claro há mais de 25 anos.

Ao longo do tempo, percebeu-se que o teor dos arts. 193 a 197, e dos demais dispositivos a eles relacionados, não era suficiente para fazer com que o sistema construído pela Lei das Sociedades por Ações superasse a ingerência de fatores humanos sobre as regras de determinação do uso do lucro social.

A racionalidade econômica, os valores e instituições que influenciam o direito societário no país, permitiram que a intenção da lei fosse subvertida. Uma vez que os incentivos dos administradores e controladores, correlacionados aos respectivos graus individuais de aversão ao risco, preservação de reputação e acúmulo patrimonial, excediam os custos da não observação estrita aos comandos legais, a regra no Brasil passou a ser a retenção do lucro e a distribuição passou a ser a exceção.

O § 6o do art. 202 buscou corrigir essa situação da forma mais explícita possível ao tornar literal a regra de que o lucro pertence primordialmente ao acionista. Buscou dificultar a retenção irregular dos lucros sociais pelos administradores e controladores e, com isso, reequilibrar o balanço entre os diversos interesses envolvidos na utilização do fluxo de caixa livre das companhias.

Em 2007, nova reforma da Lei das Sociedades por Ações excluiu a "reserva de lucros acumulados" da relação de contas do patrimônio líquido das sociedades, constante de seu art. 178, § 2o, d, em mais um passo que contribuiu para eliminar quaisquer dúvidas a respeito da ilegalidade da retenção genérica de lucros.

Com a reforma da Lei das Sociedades por Ações promovida em 2001, e também com as modificações de 2007, esperava-se que deixasse de ser comum, nas companhias brasileiras, a retenção genérica de lu-cros e a distribuição de dividendos sempre limitados ou referenciados pelo montante do dividendo mínimo obrigatório.

Entendido de outra forma, o dividendo mínimo obrigatório passou a ser visto pelas companhias brasileiras como dividendo máximo ou justo a que têm direito os sócios. Aqui também, a regra havia se transformado em exceção. E o objetivo das reformas era reverter essa situação.

Ocorre que, a despeito de todos os esforços legislativos, e da evidência da lógica societária que deveria comandar a realidade, o fato é que a balança continuou a pender a favor dos administradores e controladores.

Sob a ameaça da perda do controle sobre o fluxo de caixa livre das companhias, administradores e controladores encontraram nos últimos anos alternativas para contornar o que determina o § 6o do art. 202 e manter em regime de exceção a distribuição de lucros significativamente acima do dividendo mínimo obrigatório.

A alternativa encontrada foi a manipulação das reservas estatutárias previstas no art. 194 da Lei das Sociedades por Ações. Uma vez que a simples destinação dos lucros excedentes para a reserva genérica de lucros acumulados passou a ser explicitamente ilegal, a solução foi criar, por meio do empenho do poder de controle, reservas estatutárias que em regra recolhem exatamente o saldo dos lucros após o pagamento do dividendo mínimo obrigatório e que, na prática, quase sempre apresentam níveis semelhantes de arbitrariedade e generalidade em sua utilização.

Esse é exatamente o objeto deste estudo: a utilização irregular do art. 194 em infração ao § 6o do art. 202 e a todo o sistema criado pela Lei das Sociedades por Ações para assegurar o equilíbrio entre os diferentes interesses envolvidos na disputa pelo fluxo de caixa livre das companhias.

Em consequência do exame da questão fixada no parágrafo anterior, natural aproveitar este estudo também para ava-

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