Propriedade Intelectual em Questão: Entre a Ética e o Utilitarismo. O Caso da Patenteabilidade dos Genes Humanos

AutorPablo Baquero
I – Introdução

Certos estavam os pensadores que identificaram o saber como a maior fonte de produção na sociedade atual1, sendo a “ciência (...) incorporada diretamente aos processos produtivos2”, determinando, conseqüentemente, o êxito e a competitividade que um negócio ou produto terá no mercado. Efetivamente, há, dentre os pós-modernos, defensores da idéia de que vivemos na “sociedade da informação” 3, quem considere que, historicamente, houve uma modificação dos bens economicamente relevantes: se na idade média eram os bens imóveis e, na idade moderna, os bens móveis, nos dias atuais, os bens imateriais ou desmaterializados teriam assumido a posição preponderante na economia mundial4.

Indício forte de que essas idéias têm alguma relevância se encontra na Lista dos homens mais ricos do mundo da Revista FORBES de 20075, encabeçada pelo multibilionário Bill Gates, que construiu sua fortuna a partir dos lucros obtidos na comercialização de um software. Uma análise da Lista permite concluir que boa parte dos seus membros também enriqueceu com a exploração e comercialização de bens desmaterializados, tais como as telecomunicações, os investimentos, o crédito, o lazer e a segurança.

Dessa forma, se o fenômeno jurídico, conforme afirma Miguel Reale, é uma realidade histórico-cultural, “isto é, positivado no espaço e no tempo, como experiência efetiva, passada ou atual6”, então também o Direito teve de mudar e evoluir para abarcar estas mudanças profundas que ocorreram nos meios de produção, modificados pela incidência da tecnologia, e nos bens economicamente relevantes. Tais fenômenos exigiram a criação de novos modelos jurídicos complexos, que permitissem a transferência dessas riquezas, e uma nova forma de propriedade, agora sobre bens imateriais.

É com o advento da sociedade industrial, na qual a produção passa a envolver técnicas cada vez mais sofisticadas, que evidentemente incorporam muito do conhecimento científico, que “a concepção jurídica ampliar-se-á, buscando demarcar o campo de domínio do próprio conhecimento, e não apenas das coisas em si, das mercadorias7“.

Embora de origem remota8, a proteção da propriedade intelectual só assume maior importância, pelo menos em termos internacionais9, com a União Internacional para a Proteção da Propriedade Industrial (Convenção da União de Paris - CUP), de 1883, que “estabeleceu os princípios básicos que deveriam ser observados por todos os países que a ela aderissem” 10. Conjuntamente com a Convenção da União de Berna para a Proteção de Obras Literárias e Artísticas (1886), a Convenção da União de Paris fundou o modelo tradicional ou histórico de proteção da propriedade intelectual, que se manteve praticamente inalterado por cerca de 50 anos. Uma nova fase, que corresponde ao modelo atual, se iniciava com a Convenção de Estocolmo (1967), que criou a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e se consolidaria com a fundação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1994, que incluiu, no anexo 1-C do seu tratado constitutivo, o Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade (doravante Acordo TRIPS), o mais importante acordo de propriedade intelectual em nível internacional hodiernamente, e parâmetro para as legislações nacionais dos membros da OMC.

Se, por um lado, o Direito consagrou a proteção dos bens imateriais11, por outro, buscou estabelecer critérios legais restritos para que ela fosse concedida, a saber, no caso das patentes12, a novidade, o critério da inventividade e da utilidade13. Ademais, os acordos relativos à propriedade intelectual, quase que em sua totalidade, estabeleceram cláusulas de ordem pública e de moralidade14, que impediriam que determinadas invenções, contrárias aos standarts morais de determinada sociedade, pudessem ser patenteadas.

Certamente, uma das matérias em que as restrições éticas e morais à propriedade intelectual mais incidem é no campo do biodireito. Os grandes avanços alcançados na biotecnologia, permitindo a utilização de organismos vivos para fins comerciais específicos - incluídos aí partes do corpo humano, criou a necessidade de criar limites expressos a práticas que violassem o princípio da dignidade da pessoa humana. O anedótico caso da patente de Edimburgo15, posteriormente retificada pela Oficina Européia de Patentes, que supostamente abrangeria células-tronco humanas, é um exemplo, dentre muitos outros, de caso em que tais restrições se fizeram presentes, especialmente em razão da grande oposição da sociedade civil.

Nesse sentido, diversos instrumentos internacionais estabeleceram princípios que servem como limite a tais práticas. O Considerando 5º da Declaração dos Direitos do Homem de 1948, estabelece o princípio da dignidade e do valor da pessoa humana, do qual decorre o princípio da não patrimonialidade do corpo humano16.

Por sua vez, a Declaração Universal da UNESCO sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, em consonância com esses princípios, estabelece no seu art. 1° a noção de que o genoma humano é a base fundamental dos seres humanos, inerente à sua dignidade e diversidade e que, dessa forma, é patrimônio comum da humanidade, em sentido simbólico17.

Ainda nesse sentido, no Brasil, a Lei de Propriedade Industrial (Lei 9279/96), no seu art. 10, IX, não considera como invenção, excluindo, portanto de proteção proprietária “o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais”.

Feitas essas considerações iniciais, poderia ficar a impressão de que a possibilidade de patentear genes humanos representa apenas mais um desses casos bizarros, diretamente saídos dos livros de ficção científica, e que, se não são completamente vedados pelo Direito, ao menos não representam uma orientação majoritária.

Não obstante, o patenteamento de genes humanos já é prática consolidada nos Estados Unidos, União Européia e no Japão. O presente trabalho irá se ater a analisar o tratamento conferido à matéria apenas nos EUA e na União Européia. Em seguida buscar-se-à analisar os argumentos favoráveis e contrários à patenteabilidade de genes humanos comumente levantados para, na conclusão, buscar indicar algumas sugestões que possam contribuir para a solução das controvérsias relativas ao tema.

Considerando que existe uma pressão muito grande dos países onde se concentram laboratórios e indústrias farmacêuticas no sentido de promover a proteção jurídica proprietária em nível internacional sobre os produtos que desenvolveram18, e que há uma tendência de que, num futuro próximo, aumente o número de produtos desenvolvidos a partir de genes humanos, a questão assume relevância inclusive para o Brasil, embora este vede expressamente tal prática.

Dada a grande complexidade do tema, é imperativo iniciar com alguns esclarecimentos de natureza científica e biológica a respeito da questão.

II - Da possibilidade de utilizar os genes humanos para aplicações industriais específicas

O genoma humano representa todo o material hereditário contido em uma única célula do corpo humano. No interior do núcleo de cada célula do corpo humano, há 23 pares de cromossomos. Cada um deles é transportado por uma molécula de DNA, em formato de dupla hélice. O genoma assegura o funcionamento das células e a transmissão de características hereditárias ao longo das gerações.

Os genes humanos, por sua vez, são unidades de informação, seqüências específicas do DNA, localizadas em um cromossomo específico, que comandam a produção de uma ou diversas proteínas e asseguram a transmissão e a expressão de uma característica específica.

A biotecnologia moderna, cujos maiores avanços teriam se dado no campo da genética, permitiu o avanço do conhecimento a respeito da localização e da função dos genes. O avanço da genética, combinado com o avanço da bioinformática, possibilitou seqüenciar o genoma de diferentes organismos, permitindo identificar os genes que o compõem e sua respectiva função19.

O seqüenciamento do genoma humano revelou que há mais de 30.000 genes humanos e permitiu localizar alguns deles e determinar a proteína que produzem (por exemplo, gene do hormônio do crescimento) ou mesmo a doença que predispõem (como a doença de Huntington)20.

Tais conhecimentos , aliados à biotecnologia, transformaram o gene numa entidade suscetível de isolamento, manipulação e multiplicação. Identificada a seqüência de um gene, aquela porção específica do DNA pode ser isolada, reproduzida artificialmente, e assim dispor de elementos suficientes para produzir uma proteína específica. Com isso, pode-se, por exemplo, produzir uma proteína terapêutica que permita desenvolver um medicamento. Pode-se ainda, inserir um gene modificado no organismo de um paciente, com o objetivo de suprir um gene anormal, e de atenuar, prevenir ou tratar uma doença específica.

Ainda que se reconheçam as limitações da genética e suas descobertas – especialmente o desconhecimento de todas as funções que um gene ou uma proteína pode ter, ou mesmo a questão de que a expressão de uma mesma característica pode ser uma contribuição de diversos genes, o ponto crucial é que a biotecnologia criou instrumentos capazes de explorar informações genéticas, tornando-as passíveis de diferentes aplicações21.

Não raro, tais aplicações passaram a envolver grandes...

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