A questão da acessibilidade

AutorLuíza Resende Guimarães, Maria Clara Versiani de Castro
Páginas657-690
A questão da acessibilidade • 657
A QUESTÃO DA ACESSIBILIDADE
A CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS
DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Luíza Resende Guimarães1
Maria Clara Versian i de Castro2
Resumo: O presente trabalho teve como objetivo geral mapear como
as mudanças advindas da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deciência e do Estatuto da Pessoa com Deciência têm impactado a
jurisprudência, em especial como a questão da acessibilidade vem sen-
do debatida no Superior Tribunal de Justiça. A metodologia utilizada
foi a pesquisa bibliográca, primordialmente a partir da utilização de
dados secundários, e também jurisprudencial. A pesquisa foi realizada a
partir de três descritores: Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deciência; Estatuto da Pessoa com Deciência; e Deciência [e] Aces-
sibilidade. Foram identicados mais de uma centena de acórdãos nessa
primeira busca, dentre os quais apenas 14 versavam sobre temas de di-
reito civil. Dessa análise, centrada nos últimos dez anos, observa-se uma
preocupação do STJ em garantir o direito à acessibilidade para integrar
e incluir as pessoas com deciência. As discussões, contudo, ainda care-
cem de maior aprofundamento teórico: em geral, há apenas menções a
conceitos de artigos mais gerais da CDPD e do EPD.
Palavras-chave: Pessoa com deciência. Acessibilidade. Superior Tri-
bunal de Justiça.
1
Mestranda em Direito Civil pela UFMG. Bolsista de Mestrado do CNPq. Bacharel
em Direito pela UFLA. Pesquisadora do Laboratório de Bioética e Direito (LABB/
UFLA/CNPq).
2
Mestranda em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais. Advogada.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Lavras. Pesquisadora do Laborató-
rio de Bioética e Direito - LABB.
658 • O Direito Civil nos Tribunais Superiores
INTRODUÇÃO
O tratamento historicamente conferido às pessoas com de-
ciência é marcado por crueldade e invisibilidade. Nesse sentido, sua
existência já foi tida como prescindível, já que não eram vistas como
“socialmente úteis”. Igualmente, elas já foram alvo de medo e/ou pura
piedade, justicados por crenças religiosas. Quando, avançando na linha
do tempo, a ciência tomou o lugar anteriormente ocupado pela religião,
passou-se a acreditar que apenas se fossem reabilitados esses indivíduos
poderiam desfrutar do “privilégio” de viver em sociedade. No mesmo
período, suas vidas eram consideradas objetos de assistência social. Em
verdade, este traço é marcante: pessoas com deciência eram enxerga-
das muito mais como objetos do que sujeitos das próprias narrativas de
vida. Em tempos hodiernos, podem ser identicadas diversas tentati-
vas de modicação dos cenários acima descritos. A mais iminente delas,
no campo jurídico, é a promulgação da Convenção Internacional sobre
os Direitos das Pessoas com Deciência, fruto de uma tendência de es-
pecicação de tratados vinculantes de direitos humanos. Como conse-
quência de suas disposições, consolidou-se o modelo biopsicossocial da
deciência, vetor de inúmeras modicações no que tange à tratativa
dessas pessoas. O Brasil é um dos países signatários do tratado e, em
cumprimento às obrigações nele estabelecidas, foi promulgado, no ano
de 2015, o Estatuto da Pessoa com Deciência.
São muitas as modicações advindas de ambos os diplomas
para o ordenamento jurídico pátrio. No âmbito doutrinário civil, a mais
debatida delas gira em torno do reconhecimento da capacidade legal
das pessoas com deciência em igualdade de condições com os demais
em todos os aspectos da vida. A presente pesquisa, todavia, intenta ana-
lisar o peso das modicações trazidas pela CDPD e pelo EPD não de
uma perspectiva doutrinária, mas jurisprudencial. Com esse objetivo, a
análise será centrada em decisões do Superior Tribunal de Justiça sobre
o tema, órgão que ainda não foi palco de discussões acerca da aludida
questão que envolve a capacidade legal.
Em um primeiro momento, portanto, a ideia do trabalho era
investigar de forma ampla quais as repercussões da Convenção e do Es-
tatuto nos acórdãos do STJ, notadamente aquelas que tangenciam o di-
reito civil. A partir de uma pesquisa inicial, no entanto, constatou-se que
uma temática aparecia com mais frequência e merecia maior destaque: o
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direito à acessibilidade, garantido expressamente em ambos os diplomas
legais supracitados.
Isso posto, julga-se necessário que a primeira parte da exposi-
ção seja mais teórica e sirva para contextualizar o signicado e alcance
da acessibilidade nos textos da CDPD e do EPD. Em seguida, tem-se
os dois tópicos responsáveis pela exposição da pesquisa jurisprudencial.
Ressalta-se que esta foi realizada, conforme o objetivo apresentado, com
base em três descritores: (i) Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deciência; (ii) Estatuto da Pessoa com Deciência; e (iii) Acessi-
bilidade [e] Deciência.
No Tópico 2, serão apresentados os acórdãos que fazem men-
ção à CDPD e/ou ao EPD, porém giram em torno de questões alheias
à acessibilidade; e também aqueles que tratam da acessibilidade, mas
sem citar nenhum dos dois diplomas legais analisados. No Tópico 3, em
contrapartida, serão examinados os acórdãos que conjuguem menções à
CDPD e/ou ao EDP com a temática da acessibilidade.
1 A QUESTÃO DA ACESSIBILIDADE NA
CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS
DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E NO
ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Promulgada em território nacional em 25 de agosto de 2009,
por meio do Decreto de n. 6.949, a Convenção Internacional sobre os
Direitos das Pessoas com Deciência é fruto de intensos debates entre
atores estatais e representantes da sociedade civil. O tratado representa
uma mudança paradigmática no tratamento dispensado às pessoas com
deciência e, em especial, aos seus direitos, vez que derruba, em grande
medida, a relação de causalidade e de dependência entre eventuais im-
pedimentos corporais e as desvantagens sociais vivenciadas pelos indiví-
duos com diversidades funcionais1.
Nesse sentido, observa-se que a Convenção encontra suas ba-
ses teóricas no chamado modelo biopsicossocial de deciência. Sob a
ótica deste modelo, a deciência constitui uma experiência que conju-
ga impedimentos corporais com barreiras física e socialmente impostas
1
DINIZ, Débora; BARBOSA, Lívia; SANTOS, Wederson Runo dos. Deciência,
Direitos Humanos e Justiça. SUR- Revista Internacional de Direitos Humanos.
São Paulo, v. 6, n. 11, 2009, p. 65-66.

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