A questão da deficiência e da educação na sociedade contemporânea: possibilidades e limites da intervenção do profissional do serviço social

AutorSayonara Grillo Coutinho Leona da Silva
Ocupação do AutorOrganizadora
Páginas281-288

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1. Introdução

Este artigo é resultado de um estudo1 documental/bibliográfico e empírico realizado em 2011/2012 pela pesquisadora do NEDh2 – e autora do artigo – e tem por objetivo apresentar reflexões sobre as possibilidades e os limites da intervenção do profissional do serviço social com relação à pessoa com deficiência e à educação na sociedade contemporânea.

O artigo configura-se a partir da análise das relações sociais travadas pelas pessoas com deficiência e da trajetória histórico-conceitual da própria deficiência; além da reflexão a respeito da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU), de 2006, e da categoria de análise “direitos humanos”. Ademais, o artigo se propõe a discutir a questão da educação na sociedade brasileira e as problemáticas correlatas, como a inserção do profissional do serviço social nos espaços educacionais.

2. A trajetória histórico-conceitual da deficiência

A deficiência pode ser compreendida de duas maneiras. Uma das formas de entendê-la diz respeito à manifestação da diversidade humana, na qual um corpo com impedimentos é o corpo que vivencia limitações de ordem física, intelectual ou sensorial. Entretanto, são as barreiras sociais – os efeitos e as reações que tais limitações provocam na sociedade – que, ao ignorar os corpos com impedimentos, ou ainda, ignorar os sujeitos como indivíduos complexos, e não apenas reduzidos à sua deficiência, provocam a experiência da desigualdade, e não o próprio impedimento, como se pensaria na ordem lógica e direta, que provoca a desigualdade social e suas decorrências. Desta forma, a opressão não é um atributo dos impedimentos corporais, mas o resultado de sociedades tidas como não inclusivas.

A outra forma de entender a deficiência refere-se a uma desvantagem natural, e, nesse caso, os esforços se deslocam para o reparo dos impedimentos corporais, visando garantir a todas as pessoas um padrão de funcionamento típico à sua espécie, tendo em vista que, em nossa sociedade, os impedimentos corporais são classificados como indesejáveis e não simplesmente como uma expressão “neutra” ou natural da diversidade humana, assim como são a diversidade étnico--racial, geracional ou de gênero. Nesse sentido, o corpo que apresenta impedimentos deve submeter-se a alguma transformação (seja ela genética, na forma da reabilitação ou por meio de práticas educacionais) para enquadrar-se no que é imposto socialmente: o padrão de normalidade.

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Cabe aqui uma breve observação sobre os conceitos “pessoa com deficiência” e “impedimentos corporais” presentes na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 20063. A Convenção aponta que “pessoa com deficiência” anuncia um caráter político de como os impedimentos corporais são objeto de discriminação e opressão em sociedades pouco inclusivas e descreve as pessoas que habitam corpos ditos com impedimentos. Expressa, também, “impedimentos corporais” referindo-se às variações corporais catalogadas pela ótica biomédica como desvantagens naturais. Nesse sentido, a deficiência pode ser entendida como um conceito “guarda-chuva”. Em dado momento, visto como resultado da negociação de significados sobre os corpos com impedimentos, outrora, como um dos efeitos da cultura do padrão de normalidade que ignora os impedimentos corporais, negligencia-os (DINIz; BARBOSA; SANTOS, 2009).

Voltemos às duas formas de compreender a pessoa com deficiência. Ainda que as duas análises apresentadas não sejam excludentes entre si, apontam para sentidos distintos no desafio imposto pela deficiência, principalmente no campo dos direitos humanos. Visto que a primeira concepção transfere à sociedade a responsabilidade pela reação ao que a deficiência representa para o coletivo e para o indivíduo, a segunda análise insiste no padrão histórico de uma norma-lidade a qual todos os sujeitos devem se enquadrar, ou seja, é responsabilidade do indivíduo reparar a sua essência para tornar-se parte do todo, da sociedade.

Nesse sentido, o entendimento do que é considerado deficiência, não pode se resumir a catalogação de doenças e lesões a partir de uma perícia biomédica do corpo (DINIz et al. 2009, p. 21 apud DINIz; BARBOSA; SANTOS, 2009,
p. 21). Deficiência é “um conceito que denuncia a relação de desigualdade imposta por ambientes com barreiras a um corpo com impedimentos” (DINIz; BARBOSA; SANTOS, 2009, p. 65). Atualmente, a “Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas define as pessoas com deficiência como aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diferentes barreiras (sociais, arquitetônicas ou comunicacionais), podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas” (ONU, 2006a, artigo 1º apud DINIz; BARBOSA e SANTOS, 2009, p. 66). Portanto, a deficiência não pode ser entendida apenas a partir do que o olhar médico descreve, pois é principalmente a restrição à participação e interação plena provocada pelas barreiras sociais que condicionam as possibilidades de relacionamentos das pessoas com deficiência na sociedade.

No decorrer da história, as pessoas com deficiência já tiveram diversas denominações. No início do século xx, o ter-mo utilizado para denominar as pessoas com deficiência era “inválidos”, que significava indivíduos sem valor. Até 1960, eram “indivíduos com capacidade residual”, o que, segundo Sassaki (2003), foi um avanço da sociedade, reconhecendo que a pessoa tinha capacidade, embora ainda considerada reduzida. Entre 1960 e 1980, outra variação foi o uso dos termos “incapazes” e “excepcionais”, que focavam nas deficiências e reforçavam o que as pessoas não conseguiam fazer, frente à maioria da população. Na década de 1980, por pressão da sociedade civil, a Organização mundial da Saúde (OmS), lançou a terminologia “pessoas deficientes”. Iniciou-se então uma conscientização já que foi atribuído o valor “pessoas” àqueles que tinham deficiências, igualando-os em direitos – mesmo que apenas na teoria – a qualquer membro da sociedade.

Até os dias atuais, muitos nomes já foram utilizados para denominar as pessoas com deficiência, como “pessoas portadoras de deficiência”, “pessoas com necessidades especiais”, “pessoas especiais” ou “portadores de direitos especiais”, e, segundo Sassaki (2003), atualmente todos estes termos são considerados inadequados por representarem valores agregados à pessoa. No entanto, vale lembrar que o uso dessas expressões estava inserido em contextos sociais pertinentes à época e por isso devem ser valorizados enquanto partícipes de um processo histórico em desenvolvimento.

Ressalta-se que as análises realizadas sob teorias em torno de polos, apresentadas em oposições binárias, pressupondo haver um vazio entre estes, giram em torno de discussões que deveriam ser ultrapassadas como “ser ou não-ser” deficiente, da “adequação ou não” de inseri-los na categoria de necessidades especiais (que pode referir-se a todos aqueles que precisam de um apoio e/ou atendimento diferenciados, como os idosos e as gestantes), da “importância ou não” de diferenciar as necessidades especiais das necessidades educacionais especiais e da diferença entre integração e inclusão.
Todas estas análises teórico-metodológicas poderiam deixar de existir se a sociedade reconhecesse a diferença das pessoas com deficiência. Em outras palavras, a sociedade deveria en-tender e aceitar a deficiência como um fator natural, que deve ser respeitado, e nas relações interpessoais deve-se respeitar o “outro” como ele é, livre de comparações classificatórias ou categorizadoras.

O afastamento da sociedade em relação às pessoas com deficiência, com a ideia do “não-pertencimento”, principal-mente no decorrer do sistema capitalista, promoveu um sentimento de diferença sobre este grupo, caracterizando o que é chamado de estigma, especialmente colocado por Erving Goffman (1963), em seu texto “Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”.

O estigma é uma marca atribuída a um sujeito ou grupo, decorrente de uma construção social, determinando e

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influenciando a visão e relação que a sociedade constrói e reproduz, por exemplo, com o segmento das pessoas com deficiência. O estigma é justificado por intermédio de processos históricos, não estando, portanto, condenado a estabilidade conceitual.

A construção do imaginário social a respeito da deficiência é, geralmente, calcada sobre a concepção de normalidade – mesmo que não saibamos exatamente definir o que é ser normal – ou então sobre a oposição binária entre normali-dade e deficiência, tal como afirma Skliar “a deficiência está relacionada com a própria ideia de normalidade e com sua historicidade” (2000 apud CARVALhO, 2004, p. 5). Saviani (1998, p. 128 apud CARVALhO, 2004, p. 53) propõe duas formas de pensar essa oposição: pensar a contradição e pensar por contradição.

Se analisarmos a contradição entre as pessoas ditas normais e as pessoas com deficiência, estamos baseando-nos no que falta para a pessoa com deficiência, o que o torna diferente e, portanto, incompleto, em comparação as pessoas sem deficiência. Sendo assim, o sujeito que não se encaixa na hegemonia da normalidade tem um déficit; ou, para aqueles superdotados, um superávit, já que a hegemonia não correspondida provoca indagações a respeito da sua superioridade.

No entanto, se a análise for feita pensando por contradição, percebe-se que as pessoas não podem ser enquadradas na condição de serem “isso ou aquilo”, pois variam de acordo com as formas de manifestação e as expectativas dos grupos sociais em torno dos comportamentos humanos. E mais, a importância...

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