A questao indigena no Servico Social: um debate necessario na profissao/The issue of indigenous peoples in Social Work: a necessary debate in the profession.

AutorAmaral, Wagner Roberto do
CargoREVISTA EM PAUTA

O Servico Social brasileiro apresenta uma trajetoria historica marcada, principalmente nos ultimos 40 anos, por avancos na construcao de um projeto etico-politico profissional pautado na defesa das classes historicamente subalternizadas, bem como no empenho pela eliminacao de todas as formas de opressao, exploracao e preconceito (CFESS, 2016). Tal projeto profissional tornou-se constitutivo em dimensoes teorico-metodologicas, etico-politicas e tecnico-operativas fundamentais para a compreensao das expressoes da "questao social" (NETTO, 2011) e para o seu enfrentamento no cotidiano do trabalho dos assistentes sociais.

E nesse recente percurso que passam a ser pautadas tematicas que se agregam a compreensao critica e ampliam-na, portanto, aproximando-se da totalidade da realidade brasileira e latino-americana. Um elenco de novas leituras e reflexoes passou a compor o arsenal teorico-investigativo e formativo das e dos assistentes sociais, dos quais destacam-se neste texto e neste contexto a questao etnico-racial e, associada a esse debate, a questao indigena. O que denominamos nesse texto como questao indigena se revela intimamente articulado e dimensionado a questao etnico-racial, tendo em vista estarem conectados a ofensivas colonialistas e capitalistas semelhantes, ainda que, para os povos indigenas, a questao territorial seja vital e tenha profunda centralidade nesse processo.

A expressao "etnico" da questao etnico-racial revela as atrocidades, etnocidios e desumanidades cometidas pelo modo de producao capitalista em seu processo de expansao e consolidacao, impactando povos indigenas inteiros e, portanto, originarios desse territorio, assim como as populacoes africanas afetadas pela diaspora e pela escravidao colonialista.

A questao racial - evidenciada pela diaspora africana, pela escravidao de milhoes de mulheres e homens exportados como mercadoria e pela exploracao da forca de trabalho de trabalhadoras/es negras/os -, segundo Goncalves (2018, p. 515), "sustentou a conformacao do antagonismo entre as classes sociais, isto e, foi alicerce da desigual distribuicao de riquezas no emergente capitalismo brasileiro". Assim como a primeira, a questao indigena tambem encontra-se profundamente vinculada a questao social. Esta vinculacao mostra-se atraves das ofensivas capitalistas de usurpacao de territorios tradicionais, dos etnocidios e dos processos de negacao e ocultamento oficial de pertencimentos etnicos no intento da constituicao dos indigenas como "trabalhadores nacionais" (PACHECO DE OLIVEIRA; FREIRE, 2006; LUCIANO, 2006).

Desta forma, a questao indigena, componente explicita da questao etnico-racial, alem de, per si, denunciar os processos etnocidas marcados pelas violencias, epidemias, escravidao, mortes, torturas, omissoes, invisibilidades, preconceitos e expropriacao territorial vivenciados pelos povos indigenas ha mais de 520 anos de contato (historicamente conectado aos processos de escravidao negra no pais), revela ainda as diferentes estrategias de luta e de resistencia destas populacoes (PACHECO DE OLIVEIRA; FREIRE, 2006; LUCIANO, 2006). Tais memorias, lutas e resistencias historicas se manifestam pela presenca e intensa atuacao dos movimentos e organizacoes indigenas no Brasil e na America Latina, tendo avancado, sobremaneira, desde a decada de 1970, alcancando conquistas constitucionais importantes, ainda que muitas delas ainda nao efetivadas.

Tais resistencias historicas se evidenciam, ainda e teimosamente, no campo da producao do conhecimento em distintas areas e em diferentes categorias profissionais, sendo o Servico Social um espaco potencial e proficuo nessa tematica, haja vista sua configuracao etico-politica. Essa producao cientifica e academica tem se apresentado num contexto recente nao somente pela autoria de pesquisadores nao indigenas, mas, fundamentalmente, por intelectuais e pesquisadores indigenas de distintos pertencimentos etnicos.

Almeida (2017) reflete sobre a importancia da inclusao das tematicas de genero e da questao etnico-racial na esteira das discussoes nacionais sobre o codigo de etica dos assistentes sociais, bem como sobre a proposta nacional de curriculo minimo para o curso de Servico Social. Dessa forma, Almeida (2017, p. 36) as considera um avanco na democratizacao da profissao, fundamentalmente pela inclusao da realidade do racismo, possibilitando "o fortalecimento do Servico Social e de sua direcao politica pela construcao de uma nova ordem societaria, em defesa da classe trabalhadora". Argumentando sobre o perverso saldo do colonialismo europeu para o povo negro no Brasil e sua intima e estruturante associacao com o modo de producao capitalista, a autora afirma que:

E a historia da luta de classes e, nesse contexto, a hegemonia dos padroes civilizatorios euro norte-americanos tem provocado silenciamentos, invisibilidades e dores para aqueles (as) que nao escolhem ou vivenciam a supremacia branca como expressao de sua existencia. (ALMEIDA, 2017, p. 36).

E nessa perspectiva que a inclusao da tematica indigena no Servico Social brasileiro se apresenta - profunda e historicamente associada aos processos originais de exploracao, espoliacao e etnocidio colonial presentes desde os primeiros contatos entre os povos originarios habitantes desse territorio com os arautos da expansao constitutiva do modo de producao capitalista, do seculo XVI ate a contemporaneidade. Contudo, revela ainda as profundas e historicas expressoes de resistencia, lutas e organizacao dos povos indigenas no Brasil e em toda America Latina (MILHOMENS; BARROSO, 2019).

Dessa forma, esse artigo pretende contribuir com o processo de aproximacao e dialogo entre a questao indigena e o Servico Social, agregando-se a teimosia historica de luta contra o racismo e de afirmacao dos direitos dos povos originarios do nosso pais e do nosso continente.

A questao indigena constitutiva a questao social brasileira

A questao indigena brasileira se apresenta e esta marcada desde o inicio do seculo XVI pela relacao impositiva e violenta entre o projeto colonialista europeu e os povos originarios habitantes desse territorio, orientados, fundamentalmente, pelos interesses mercadologicos de expansao capitalista de exploracao dos recursos naturais existentes e expropriacao dessas terras. Segundo Pacheco de Oliveira e Freire (2006), diferentes registros e estudos indicam que o Brasil do ano de 1500 era habitado por cerca de 1.400 povos indigenas diferentes, com estimativas que vao de 1.500.000 a 5 milhoes de pessoas. Inumeras pesquisas arqueologicas assinalam ainda a ocupacao do territorio brasileiro por populacoes paleoindias ha mais de 12 mil anos (FUNARI; NOELLI, 2005).

Os diferentes contextos historicos - Periodo Colonial, Imperial e as diferentes fases republicanas - redesenharam a relacao entre Estado e sociedades indigenas, sempre mediadas pela expropriacao, usurpacao e exploracao dos seus territorios tradicionais, seja pelas monoculturas agricolas e agropecuarios, seja pelos empreendimentos publicos e privados telegraficos, ferroviarios, hidroeletricos e de transmissao eletrica, rodoviarios, de mineradoras etc, bases fundamentais para a estruturacao urbano-industrial no pais. Destaca-se ainda, no Periodo Colonial, a existencia da escravidao indigena, que caracterizou a caca e o aprisionamento de milhares de pessoas indigenas e seu envio para o trabalho escravo em fazendas (GORENDER, 2016).

Os intentos colonialistas nos periodos Colonial, Imperial e Republicano apostaram intensamente na descaracterizacao eugenica das populacoes indigenas enquanto estrategia de amansamento, miscigenacao e conversao como trabalhadores nacionais, e de forma homogenea na construcao simbolica da nocao de "povo brasileiro" (RIBEIRO, 1995), tambem associado ao ideario da democracia racial. Constitui-se, desta forma, a generica, simbolica e perversa expressao do "indio brasileiro", representado pelas manifestacoes artisticas europeias e pela nascente literatura brasileira.

Tal empreitada passa a ser subvertida por processos de resistencia dos povos indigenas ao comporem fronteiras etnicas (BARTH, 1998), reconstituirem suas identidades e seus criterios proprios de indianidade nos contextos e situacoes especificas de contato (CUNHA, 1987).

Os povos indigenas no Brasil, comum e vulgarmente chamados de "indios", sao historicamente marcados por estereotipos, percebidos ora...

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