A 'questão siderúrgica' e o papel do estado na industrialização brasileira

AutorGilberto Bercovici
Páginas571-615
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A “QUESTÃO SIDERÚRGICA” E O
PAPEL DO ESTADO NA
INDUSTRIALIZAÇÃO BRASILEIRA*
A metalurgia no Brasil foi introduzida nos tempos coloniais. To-
das as ferramentas eram importadas, o que demonstra a necessidade de
haver fundições nas colônias americanas. O primeiro engenho de fundir
ferro erguido no continente situava-se, por volta de 1550, próximo a
Sorocaba, no morro do Araçoiaba, pertencendo a Afonso Sardinha.
Haveria um outro engenho de fundir ferro a duas léguas da vila de São
Paulo, em Santo Amaro do Ibirapuera, na margem esquerda do rio
Pinheiros, de propriedade de Diogo de Quadros e de Francisco Lopes
Pinto, que teria funcionado de 1607 até 1629.1 O método utilizado era
* Este texto foi publicado na Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro, vol. 452,
2011, pp. 373-414 e no livro CLARK, Giovani; CORRÊA, Leonardo Alves &
NASCIMENTO, Samuel Pontes do (orgs.). Direito Econômico em Debate, São Paulo:
LTr, 2015. pp. 15-58.
1 ESCHWEGE, Wilhelm von. Pluto Brasiliensis. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/
EDUSP, 1979. Vol. 2, pp. 201-202; HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos
e Fronteiras. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp. 157-167; BARBOSA,
Francisco de Assis. Dom João VI e a Siderurgia no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca
do Exército, 1958. pp. 24-32; BAER, Werner. Siderurgia e Desenvolvimento
Brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. pp. 71-73 e BARROS, Geraldo Mendes.
História da Siderurgia no Brasil – Século XIX. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1989.
pp. 35-38.
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GILBERTO BERCOVICI
o da “forja catalã”.2 Em 1780, o Governador da Capitania de Minas
Gerais, Rodrigo José de Menezes, propõe a instalação de uma fábrica
de ferro em Minas Gerais às autoridades coloniais, iniciativa que não
teria como prosperar, especialmente após o Alvará de 5 de janeiro de
1785, de D. Maria I, que proibia toda e qualquer instalação de indústria
ou manufatura nas colônias portuguesas.3
A política portuguesa muda com o Príncipe Regente D. João e a
administração de Dom Rodrigo de Sousa Coutinho (futuro Conde de
Linhares).4 As minas passam a ser regidas pelo Regimento de 13 de maio
de 1803, que teve sua elaboração atribuída a José Bonifácio de Andrada
e Silva e a Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt Aguiar e Sá (o In-
tendente Câmara). O Regimento de 1803 tentou modernizar a explo-
ração das minas brasileiras, com redução de impostos, incentivos à
constituição de companhias mineradoras, novos limites de concessão e
estímulos a novos descobrimentos, além de uma preocupação inédita
com a preservação das florestas.5 Em 1808, no entanto, há um novo
2 Para uma descrição dos métodos de fundição do ferro, desde as forjas catalã e italiana
até o alto-forno, vide GOMES, Francisco Magalhães. História da Siderurgia no Brasil.
Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1983. pp. 24-30.
3 MENDONÇA, Marcos Carneiro de. O Intendente Câmara: Manuel Ferreira da Câmara
Bethencourt e Sá, Intendente Geral das Minas e dos Diamantes, 1764-1835. 2ª ed. São
Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1958. pp. 71-73; BARBOSA, Francisco de Assis. Dom João
VI e a Siderurgia no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1958. pp. 32-35 e
BARROS, Geraldo Mendes. História da Siderurgia no BrasilSéculo XIX. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1989. pp. 38-43.
4 MENDONÇA, Marcos Carneiro de. O Intendente Câmara. 2ª ed. São Paulo: Cia. Ed.
Nacional, 1958. pp. 38-70 e BARBOSA, Francisco de Assis. Dom João VI e a Siderurgia
no Brasil. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1989. pp. 35-51.
5 CALÓGERAS, João Pandiá. As Minas do Brasil e Sua Legislação. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1904. Vol. I, pp. 154-160; MENDONÇA, Marcos Carneiro de. O Intendente
Câmara. 2ª ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1958. pp. 118-138 e COMPANHIA VALE
DO RIO DOCE. A Mineração no Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce. Rio de Janeiro:
Companhia Vale do Rio Doce, 1992. pp. 88-90. Eschwege critica o Regimento de 1803,
entendendo-o como um texto europeu que não estaria adaptado ao Brasil. Vide
ESCHWEGE, Wilhelm von. Pluto Brasiliensis. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/
EDUSP, 1979. Vol. 2, pp. 271-277. Sobre a decadência da mineração, vide, ainda, PRADO
Jr., Caio. Formação do Brasil ContemporâneoColônia. 22ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1992.
pp. 169-174.
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Regimento, de 1º de julho, que revoga o de 1803, preocupado com as
fundições e a circulação de ouro. As sociedades de mineração foram
reguladas pela Carta Régia de 12 de agosto de 1817, endereçada ao
Capitão-Geral de Minas Gerais. O artigo 8º desta Carta Régia concedia
o direito de lavrar em terras particulares. Haveria preferência do pro-
prietário do solo durante um determinado prazo. Esgotado este prazo,
a sociedade de mineração poderia explorar as jazidas ou minas existentes,
pagando uma compensação. Não se alterou o direito real sobre as minas
e jazidas, que continuaram de propriedade da Coroa. A concessão sem-
pre era da exploração, não da propriedade da mina. Apenas excepcio-
nalmente poderia ocorrer a transmissão de propriedade, nos casos de
doação explícita da Coroa.6
A implantação de uma indústria siderúrgica foi permeada de equí-
vocos e obstáculos. Foram promovidas três fábricas de ferro, isoladas e
sem comunicações: a Fábrica Patriótica, em Congonhas do Campo
(MG), sob direção do Barão Wilhelm von Eschwege, alemão que já
prestara serviços à Coroa portuguesa; a Fábrica Real do Morro de Gas-
par Soares (MG), também conhecida como Morro do Pilar, sob direção
do Intendente Câmara, e a Real Fábrica de São João do Ipanema, em
Sorocaba (SP), cujo grande administrador foi o também alemão Coronel
Frederico Luís Guilherme de Varnhagen.7
A primeira fundição de ferro ocorreu na Fábrica Patriótica de
Congonhas do Campo, em dezembro de 1812, que utilizava o método
6 CALÓGERAS, João Pandiá. As Minas do Brasil e Sua Legislação. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1904. Vol. I, pp. 160-163; vol. III, pp. 8-10 e COMPANHIA VALE DO
RIO DOCE. A Mineração no Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce. Rio de Janeiro:
Companhia Vale do Rio Doce, 1992.pp. 98-101. A necessidade da doação ser expressa
estava prevista nas Ordenações Filipinas, Livro 2º, Título XXVIII: “Por quanto em muitas
doações feitas per Nós, e per os Reys nossos antecessores, são postas clausulas muito geraes
e exuberantes, declaramos, que por taes doações, e clausulas nellas cônteùdas, nunca se
entende serem dadas as dizimas novas dos pescados, nem os veeiros e Minas, de qualquer
sorte que sejam, salvo se expressamente forem nomeados, e dados na dita doação. E para
prescrição das ditas cousas não se poderá allegar posse alguma, postoque seja immemorial”.
7 BARBOSA, Francisco de Assis. Dom João VI e a Siderurgia no Brasil. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1989. pp. 50-52 e BARROS, Geraldo Mendes. História da Siderurgia
no BrasilSéculo XIX. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1989. pp. 43-47.

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