Questao social e criminalizacao da pobreza: o senso comum penal no Brasil/Social question and criminalization of poverty: penal common sense in Brazil.

Autorde Oliveira, Laura Freitas

Violencia como expressao da questao social e a criminalizacao da pobreza

A violencia tornou-se um tema de destaque nos ultimos tempos, como se pode verificar nos noticiarios televisivos, na midia impressa e mesmo nas falas e discursos com que nos deparamos nos ambientes de convivio. Esta onda de noticias, informacoes e historias termina por apresentar uma realidade marcada por diversas formas de violencia, o que faz com que a sociedade seja permeada pelo medo e inseguranca. Discursos e praticas que legitimam diferentes formas de violencia sobre a populacao que vive em situacao de pobreza--sem mencionar a populacao feminina, negra e LGBTQI, por exemplo--sao ainda mais reforcados na atual conjuntura, quando o conservadorismo que marca o pensamento das elites no nosso pais culmina na escolha de representantes da extrema direita, tanto para a presidencia da republica quanto em diversos outros cargos publicos nas ultimas eleicoes.

Desde a segunda metade do seculo XIX, quando Engels (2019, p. 91) entreve o perecimento da propria sociedade, caso nao sejam suprimidas todas as diferencas de classe, a partir do acirramento das contradicoes proprias do sistema capitalista, pode-se perceber uma compreensao da tendencia da sociedade capitalista ao irracionalismo, ao carater antinomico desta sociedade. Menegat (2004, p. 147) traz como elemento distintivo da sociedade capitalista, em comparacao a todas as sociedades anteriores, o fato de que, mesmo sendo uma sociedade antinomica como as outras, e a unica em que "a destruicao das forcas produtivas faz parte do proprio modo de producao, e isto demonstra por si mesmo a irracionalidade desta estrutura social".

A imobilizacao, porem, "dos aspectos criativos da vida social [...] impele todos a uma aceitacao passiva deste processo" (MENEGAT, 2004, p. 148). A sociedade capitalista, assim, constitui-se como uma estrutura social amparada por um aparato juridico que lhe permite esconder sua congenita intencao de eliminacao pela violencia. Ao contrario, portanto, do que se pode imaginar a partir deste cenario que se desenha, a violencia nao e novidade, nao e um fenomeno recente, mas e parte e apenas uma das expressoes de um processo inerente a sociedade capitalista: a questao social.

A concepcao de questao social e tomada aqui como expressao de "uma arena de lutas politicas e culturais na disputa entre projetos societarios, informados por distintos interesses de classe na conducao das politicas economicas e sociais, que trazem o selo das particularidades historicas nacionais" (IAMAMOTO, 2008, p. 156--grifos no original). Conforme indica a mesma autora (IAMAMOTO, 2008, p. 161), trata-se de uma "velha questao social", que tem origem na propria natureza das relacoes sociais capitalistas, cujas determinantes se expressam sobretudo pela lei geral da acumulacao capitalista.

Essa natureza das relacoes sociais no capitalismo traduz-se pelo "carater coletivo da producao contraposto a apropriacao privada da propria atividade humana--o trabalho--, das condicoes necessarias a sua realizacao, assim como de seus frutos" (IAMAMOTO, 2008, p. 156) e na tendencia do crescimento populacional em seu ambito. Desse modo, a lei geral da acumulacao capitalista e apresentada por Marx (1985, p. 210) como aquela que "ocasiona uma acumulacao de miseria correspondente a acumulacao de capital", caracterizando o antagonismo da acumulacao capitalista, ou seja, do proprio modo de producao capitalista.

Hoje, a questao social apresenta novas expressoes. Sao exemplos o aumento da pobreza e do desemprego e a crescente precarizacao das condicoes de trabalho, a partir de um processo que se inicia no final dos anos 1970. Nesta epoca, se esgota a longa onda expansiva do capital e desenvolvem-se propostas de "politicas de ajuste estrutural", que alteram profundamente as relacoes entre o Estado e a sociedade.

Alem destes processos que conformam a "nova roupagem" da questao social, destacamos--e sobretudo aqui nos interessa--uma outra expressao, outro aspecto desta questao social: sua criminalizacao. A criminalizacao da questao social, nao sendo um fenomeno atual, tem profunda conexao, no Brasil, com a construcao da nocao de "classes perigosas" associada a pobreza. Coimbra (2001) oferece uma importante contribuicao ao debate sobre o tema.

A autora retoma o caso brasileiro a partir da epoca da escravidao, quando se dava o controle das virtualidades--controle nao somente sobre o que se e, mas tambem sobre o que se podera vir a ser. Neste caso, tera como aliadas as teorias racistas do periodo, cujo apogeu se deu na Europa da segunda metade do seculo XIX. Segundo elas, o tratamento vil a que eram submetidos os negros poderia ser justificado simplesmente por sua "natureza", sua "indole preguicosa e negligente". Pregava-se, assim, a superioridade dos brancos.

No inicio do seculo XX, a partir dos ideais eugenicos, que traduzem propostas de formacao de "uma raca pura e forte", muitas dessas teorias ganham peso no Brasil. Cresce, portanto, no imaginario social a crenca nas "classes perigosas", termo utilizado ja em 1857, por Morel (apud COIMBRA, 2001), em seu trabalho Tratado das degenerescencias. Com isso, ele designava aqueles que nao possuiriam "nem a inteligencia do dever, nem o sentimento da moralidade dos atos, e cujo espirito nao e suscetivel de ser esclarecido ou mesmo consolado por qualquer ideia de ordem religiosa" (apud COIMBRA, 2001, p. 88).

Ancorado nestas teorias, surge o movimento higienista no Brasil, no final do seculo XIX e inicio do seculo XX, penetrando em toda a sociedade. A pobreza era associada a uma "degradacao moral" e vista como uma epidemia cujo contagio era considerado inevitavel, "pois esta presente nas familias pobres e coloca sob ameaca toda a sociedade" (COIMBRA, 2001, p. 89). Este movimento ira redefinir, segundo a autora, os papeis que devem desempenhar, em um regime capitalista, a familia, a crianca, a mulher, a cidade, as classes pobres.

Uma dualidade se constroi a partir desta redefinicao de papeis: surgem os "pobres dignos", que trabalham, mantem a familia unida, observam os costumes religiosos; e os pobres considerados "viciosos", que, "por nao pertencerem ao mundo do trabalho [...] e viverem no ocio, sao portadores de delinquencia, sao libertinos, maus pais e vadios" (COIMBRA, 2001, p. 91). Para ambos os "tipos" de pobres sao utilizados dispositivos disciplinadores e moralizantes.

Chalhoub (1996) traz uma importante colaboracao sobre a constituicao do conceito de classes perigosas e sobre como este conceito e adotado no Brasil. O autor realiza esta reflexao a partir da reconstrucao da experiencia dos negros escravos, libertos e livres nos corticos cariocas. Dessa maneira, um dos objetivos principais de sua pesquisa era "explorar os corticos como esconderijos dentro da cidade, fatores de embaralhamento de livres e cativos e, portanto, como rede de protecao a escravos fugidos e elemento desagregador da instituicao da escravidao" (CHALHOUB, 1996, p. 7). De acordo com este autor, que se propoe a pesquisar, ainda, a suposta relacao entre os corticos e as epidemias de febre amarela:

os corticos supostamente geravam e nutriam 'o veneno' causador do vomito preto. Era preciso, dizia-se, intervir radicalmente na cidade para eliminar tais habitacoes coletivas e afastar do centro da capital as 'classes perigosas' que nele residiam. Classes...

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